São Paulo, segunda-feira, 12 de julho de 2004

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JUSTIÇA

STF descarta sanção por atraso em precatórios; em SP, cerca de 500 clientes de escritório de advocacia morreram na fila do pagamento

Impune, governo não paga indenizações

Juca Varella/Folha Imagem
O desempregado José Osmar da Silva, 36, baleado por um policial militar em 1987, aguarda por indenização do Estado desde 1998


SÍLVIA CORRÊA
DA REPORTAGEM LOCAL

Estados e municípios deixaram de pagar suas dívidas judiciais no prazo previsto pela Constituição Federal e -com o aval do próprio Poder Judiciário- nenhuma sanção vêm sofrendo por isso.
A impunidade oficial se deve a uma decisão do Supremo Tribunal Federal, que, em 2003, acatou a tese de que não se pode exigir o pagamento dessas dívidas -chamadas de precatórios- no prazo legal se não houver dinheiro suficiente (leia texto abaixo).
A inadimplência levará a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) a denunciar o caso à OEA (Organização dos Estados Americanos), em agosto, por desrespeito às leis e aos direitos humanos, o que pode gerar uma advertência política internacional ao país.
Entre os 10.158 precatórios ainda não pagos pelo governo paulista, por exemplo, estão 30 referentes a ações de indenização movidas por familiares de alguns dos 111 presos mortos no massacre do Carandiru. Os valores variam de um salário mínimo a R$ 200 mil.
No caso Carandiru, em que há processos ainda sem sentença, pelo menos duas ações foram extintas pela morte dos beneficiários. O atraso nos pagamentos torna esse um desfecho cada vez mais comum.
Um levantamento feito a pedido da Folha pelo escritório do advogado Evelcor Salzano, um dos maiores do ramo, indica que, dos 1.700 precatórios emitidos desde 1988 para seus clientes, 988 tiveram um beneficiário morto durante o processo -cerca de 500 após a sentença judicial, já na fila de espera pelo pagamento.
O desempregado José Osmar da Silva, 36, é um dos que estão nessa fila. No dia 12 de abril de 1987, aos 19 anos, Silva estava com a namorada em um banco de praça em Diadema (Grande SP). Ouviu passos na rua deserta. "Fiquei preocupado, mas respirei aliviado quando vi que era um PM."
A tranqüilidade durou pouco. Fardado, o PM estava bêbado e tentou abusar da moça. Chegou a rasgar-lhe a roupa. Silva reagiu e levou seis tiros. Uma das balas ficou alojada perto da coluna. Três atingiram-lhe a porção inferior da perna esquerda, que sofreu uma grave lesão vascular. O PM fugiu.
O rapaz passou por cinco hospitais e dezenas de cirurgias. Após sete meses de internação, o funcionamento da perna -que necrosou- foi mantido, mas ela tem hoje apenas a espessura do osso. Dificulta-lhe a locomoção.
"Meu pai decidiu se mudar de Diadema, porque, você sabe, os vizinhos acham que quem leva tiro da polícia deve alguma coisa", diz Silva, narrando conseqüências menos visíveis do episódio.
"Eu tenho ódio. Quando vejo um carro da polícia penso que, se eles me matarem, tudo bem. Vivo com faixas para fazer essa parte [do joelho para baixo] mais grossa. Minha mulher e minhas filhas, por exemplo, nunca viram essa minha perna." O PM foi condenado a oito anos de reclusão.
Se o Estado tivesse respeitado o prazo de pagamento dos precatórios, Silva teria recebido o benefício em 1998, um ano antes do agente policial aposentado Valdemar Vieira de Vasconcellos, 65. Ele é pai de Jefferson, assassinado por PMs em 1988, aos 17 anos.
Os policiais são réus confessos, e o caso foi levado à Justiça pelo Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese da São Paulo. Em 1999, saiu a sentença determinando o pagamento de R$ 110 mil de indenização à família do rapaz. Até hoje, porém, o dinheiro não chegou a eles.
"Não acredito que não haja verba. Eles não têm é vontade. Político é assim", diz Vasconcellos, que, à época do assassinato do filho, fazia a escolta pessoal do então secretário da Segurança Pública, Luiz Antônio Fleury Filho. "Põe aí na sua reportagem que eu quero falar com o governador. Quem sabe se eu explicar direitinho ele paga alguma coisa."
A maior parte dos precatórios alimentares -como são chamados os relacionados à sobrevivência do beneficiário- é devida a servidores públicos que questionam pagamentos de salários. Eles são maioria, mas casos como os de Silva e Vasconcellos mostram que não são os únicos.
Em 1986, o primeiro filho da doméstica Silvana Cristina da Silva passou o dia febril. No final da tarde, a adolescente, então com 16 anos, levou-o ao hospital municipal Tide Setúbal, em São Miguel Paulista (zona leste de SP). O menino foi medicado com duas injeções. Quando Silvana chegou em casa, as pernas e os testículos do filho haviam inchado.
Ela voltou ao hospital, e o bebê foi transferido para a Santa Casa. Após dois meses de internação, teve as duas pernas amputadas na altura dos quadris. Perdeu também um testículo. "A Justiça diz que foi erro médico. Acho que a injeção estava vencida", diz ela.
Fabiano, o menino, tem hoje 19 anos. Desde os seis se locomove sobre um skate, "porque aí as pessoas não me olham com dó". Como ele se sente? "Normal, não sei como é ter pernas. O único registro que eu tenho é uma foto, mas nem sei onde está. O que atrapalha um pouco é na hora de namorar, porque tem preconceito."
A família está na fila dos precatórios da Prefeitura de São Paulo desde 2000. Fabiano quer comprar uma casa e um carro adaptado, mas, no ritmo em que as dívidas estão sendo pagas receberá a indenização daqui a sete ou oito anos -com até 12 anos de atraso.


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