São Paulo, quinta-feira, 12 de agosto de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

"Não vi ninguém"

O texto da semana passada ("Sem que ninguém ficasse ferido") fez muita gente escrever para perguntar sobre a dupla negação. Não faltaram perguntas sobre o uso de duplas como "não" e "ninguém", "não" e "nada", "não" e "nenhum" etc.
Muitos leitores perguntaram se quem diz "Não vi ninguém" não afirma que viu alguém ("Menos com menos não dá mais?"). Não e não, caros leitores. Raciocínios matemáticos não valem nesse caso. Em português (e em outras línguas também) é perfeitamente comum o uso de "não" associado a "nenhum", "ninguém" e "nada". Quem diz que não fez nada quer dizer que nada fez.
Pois é aí que se chega ao ponto interessante da questão: a posição de certas palavras. Há algum tempo, a Fuvest pediu aos candidatos que escrevessem uma frase em que a palavra "algum" tivesse valor negativo. Basta pospô-la a um substantivo: "Estômago algum é capaz de resistir aos odores e às cores de uma bela pizza".
A palavra "algum" também pode corresponder a "nenhum" em frases em que aparece o "não", como se vê neste exemplo (pertinentíssimo) de Antônio Vieira, citado no "Aurélio": "É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que ou se não padeça, ou se não tema". No excerto de Vieira, "não há mal algum" equivale a "não há nenhum mal".
Muitos dos leitores que perguntam sobre a propriedade de frases como "Não peguei nada" ou "Não conheço ninguém" se apóiam no que ocorre em inglês, língua em que a dupla negativa gera resultados diferentes. É preciso deixar claro que, nesses casos, a comparação não é válida.
De uma vez por todas, é mais do que legítima a dupla negativa em português. Quem diz que não possui nada não quer dizer que possui alguma coisa, quer dizer que possui coisa alguma, ou seja... Bem, acho que essa história já deu o que tinha de dar, não?
Posto isso, peço-lhe que volte ao exemplo de Vieira, para que tratemos de um caso que talvez tenha causado alguma estranheza: o uso do oblíquo ("se") antes do advérbio "não" (em "não há mal algum que ou se não padeça, ou se não tema"). Escrito na sintaxe comum nos dias de hoje, o excerto de Vieira teria esta redação: "Não há mal algum que ou não se padeça, ou não se tema".
Na literatura clássica (portuguesa e brasileira), o que fez Vieira é mais do que comum. Em Machado de Assis ("O Enfermeiro"), por exemplo, encontra-se esta passagem: "(...) e não maltrate muito a arruda se lhe não cheira a rosas". O trecho "se lhe não cheira a rosas" equivale a "se não lhe cheira a rosas".
 
No último sábado, no Rio de Janeiro, tive a honra de assistir ao documentário "Língua - Vidas em Português" (dirigido por Victor Lopes). Trata-se de belíssimo trabalho sobre aquilo que José Saramago define como "línguas em português" ("Quase que me apetece dizer que não há propriamente uma língua portuguesa, mas línguas em português").
"Todos os dias, 200 milhões de pessoas sonham em português", diz um dos lemas do filme. Quando a obra estiver em cartaz, não deixe de vê-la, por amor à língua e à cultura dos países lusófonos (ou por amor "da língua e da cultura dos países lusófonos", como diriam os clássicos). É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

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