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PASQUALE CIPRO NETO
"Não vi ninguém"
O texto da semana passada ("Sem que ninguém ficasse ferido") fez muita gente escrever para perguntar sobre a dupla negação. Não faltaram perguntas sobre o uso de duplas como "não" e "ninguém", "não" e
"nada", "não" e "nenhum" etc.
Muitos leitores perguntaram se
quem diz "Não vi ninguém" não
afirma que viu alguém ("Menos
com menos não dá mais?"). Não e
não, caros leitores. Raciocínios
matemáticos não valem nesse caso. Em português (e em outras línguas também) é perfeitamente
comum o uso de "não" associado
a "nenhum", "ninguém" e "nada". Quem diz que não fez nada
quer dizer que nada fez.
Pois é aí que se chega ao ponto
interessante da questão: a posição
de certas palavras. Há algum
tempo, a Fuvest pediu aos candidatos que escrevessem uma frase
em que a palavra "algum" tivesse
valor negativo. Basta pospô-la a
um substantivo: "Estômago algum é capaz de resistir aos odores
e às cores de uma bela pizza".
A palavra "algum" também pode corresponder a "nenhum" em
frases em que aparece o "não", como se vê neste exemplo (pertinentíssimo) de Antônio Vieira, citado
no "Aurélio": "É a guerra aquela
calamidade composta de todas as
calamidades, em que não há mal
algum que ou se não padeça, ou
se não tema". No excerto de Vieira, "não há mal algum" equivale
a "não há nenhum mal".
Muitos dos leitores que perguntam sobre a propriedade de frases
como "Não peguei nada" ou
"Não conheço ninguém" se
apóiam no que ocorre em inglês,
língua em que a dupla negativa
gera resultados diferentes. É preciso deixar claro que, nesses casos,
a comparação não é válida.
De uma vez por todas, é mais do
que legítima a dupla negativa em
português. Quem diz que não possui nada não quer dizer que possui alguma coisa, quer dizer que
possui coisa alguma, ou seja...
Bem, acho que essa história já
deu o que tinha de dar, não?
Posto isso, peço-lhe que volte ao
exemplo de Vieira, para que tratemos de um caso que talvez tenha causado alguma estranheza:
o uso do oblíquo ("se") antes do
advérbio "não" (em "não há mal
algum que ou se não padeça, ou
se não tema"). Escrito na sintaxe
comum nos dias de hoje, o excerto
de Vieira teria esta redação: "Não
há mal algum que ou não se padeça, ou não se tema".
Na literatura clássica (portuguesa e brasileira), o que fez Vieira é mais do que comum. Em Machado de Assis ("O Enfermeiro"),
por exemplo, encontra-se esta
passagem: "(...) e não maltrate
muito a arruda se lhe não cheira
a rosas". O trecho "se lhe não
cheira a rosas" equivale a "se não
lhe cheira a rosas".
No último sábado, no Rio de Janeiro, tive a honra de assistir ao
documentário "Língua - Vidas
em Português" (dirigido por Victor Lopes). Trata-se de belíssimo
trabalho sobre aquilo que José Saramago define como "línguas em
português" ("Quase que me apetece dizer que não há propriamente uma língua portuguesa,
mas línguas em português").
"Todos os dias, 200 milhões de
pessoas sonham em português",
diz um dos lemas do filme. Quando a obra estiver em cartaz, não
deixe de vê-la, por amor à língua
e à cultura dos países lusófonos
(ou por amor "da língua e da cultura dos países lusófonos", como
diriam os clássicos). É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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