São Paulo, terça-feira, 12 de setembro de 2006

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ANÁLISE

Carandiru e outros dramas

CLAUDIO BEATO
ESPECIAL PARA A FOLHA

POUCOS eventos ocorridos na área da segurança pública tiveram um simbolismo tão marcante e emblemático como o massacre do Carandiru. A partir dali, o debate acerca de como o Estado deve tratar os criminosos e delinqüentes passou a ter contornos ideológicos definidos e posições transparentes como nunca havia ocorrido até então. A figura polêmica do recentemente falecido coronel Ubiratan, comandante da operação à época, acabou traduzindo de forma eloqüente a intensidade das posições adotadas pela extrema direita e seus oponentes no tema da segurança pública.
Opiniões dividiram-se frontalmente em relação ao massacre. Em contraste com a condenação quase universal da chacina de números chocantes por parte de militantes, estudiosos, meios de comunicação e a imprensa estrangeira, houve igualmente um enorme apoio silencioso à operação policial, com base em certa crença popular de que "bandido bom é bandido morto". Mais do que o debate em torno dos excessos praticados acima da lei, a discussão passou a gravitar sub-repticiamente em torno do tratamento que de fato o Estado deveria conferir aos criminosos. Isso explicou a surpreendente eleição do coronel Ubiratan para deputado estadual, ostentando o sintomático número 111 em sua candidatura.
Para os policiais, o episódio reforçou a crença na maneira preconceituosa como a sociedade os trata, na forma de uma das queixas recorrentes entre a tropa. Freqüentemente têm que cumprir decisões tomadas ao nível político, cuja conseqüência termina recaindo sobre eles. As autoridades de governo, verdadeiras responsáveis pela decisão de invadir o presídio, não foram responsabilizadas no episódio, preferindo relegar aos policiais o ônus do fracasso da operação. Assim, ao fortalecer-se o espírito corporativo, terminou-se por inviabilizar completamente qualquer análise mais racional e isenta das razões estruturais e contextuais do massacre.
Para a sociedade brasileira, entretanto, as conseqüências foram mais nefastas. Ao lado de outros eventos dramáticos como Vigário Geral, Favela Naval, Queimados e mais recentemente as rebeliões dos presídios pelo PCC, uma das características mais impressionantes nesse tipo de episódio é o imobilismo político. O que muda a partir desses eventos? Fora filmes, livros e implosão de prédios, quase nada. Continuamos com um dos piores sistemas prisionais do planeta, com projetos de reforma das polícias e com a discussão sobre o tratamento a ser dado aos criminosos como uma agenda de infinitos problemas em aberto.
Nesse vácuo, houve uma acomodação perversa desse universo. Os conflitos banais entre gangues rivais, bastante comuns nos presídios e que deram origem à revolta e ao posterior massacre do Carandiru, foram substituídos por bem estruturadas organizações de interesses no interior dos cárceres, passando a se encarregar da auto-regulação da população prisional paulista. Mais do que isso, passou a protagonizar desafios e ameaças explícitos ao poder constituído, defendendo de forma coesa e surpreendente a enorme heterogeneidade de interesses no interior das penitenciárias. Enquanto isso, continuamos na condição passiva de meros espectadores a esperar o próximo desses eventos dramáticos.


CLAUDIO BEATO , sociólogo, coordena o Crisp (Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

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