São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2008

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DANUZA LEÃO

Muitos anos depois


Fiquei mal; não era o caso de chegar perto, estender a mão, perguntar por onde andava, como ia a vida

É CURIOSA a memória. Um dia qualquer, uma hora qualquer, você vê uma coisa que por alguma razão te faz voltar ao passado -e às vezes, a um passado remoto.
Aconteceu comigo, outro dia.
Há muitos, muitos anos, comprei meu primeiro apartamento, ainda na planta. Foi uma felicidade. Ficava rabiscando, mudando as paredes de lugar, inventando todas as modas em todos os cômodos da casa. Nessa brincadeira o tempo foi passando, as paredes subiram, e já dava para visitar a obra, o que eu fazia três vezes por semana -e enfrentando uma escada. Um dia chegou a hora de escolher os acabamentos.
Fui tendo as idéias mais extravagantes, que eram trocadas quase todos os dias, e o grande "tchan" foram os azulejos dos banheiros (naquele tempo eram todos brancos), mandados pintar por uma amiga. Para colocá-los, era preciso um operário com um certo talento, pois os desenhos precisavam casar, mas dei sorte: encontrei um rapaz magrinho, humilde, que teve a paciência de escutar com atenção e o talento para entender tudo. Ele usava umas calças velhas, dessas de terno, a camisa era tipo social, também bem usada, calçava tamancos de madeira, e os pés, magrinhos, dançavam dentro deles. Quase não falava, mas às vezes fazia uma pergunta. Eu, dia sim, dia não, ia ver o andamento do trabalho e saía encantada. Tudo estava exatamente como eu queria.
Um dia, finalmente, o apartamento ficou pronto, e foi aquela festa; os móveis foram indo para seus lugares, as roupas, para os armários, os quadros pendurados nas paredes, e ficou tudo como eu havia sonhado.
Começou uma época de grande felicidade.
Na frente do edifício havia um jardim, onde eu levava sempre meus filhos, que eram pequenos. Numa tarde de domingo, quando passeava por ali, vi um homem sentado num banco. "Eu conheço essa cara", pensei, mas não conseguia me lembrar de onde. Ele estava sozinho, vestido modestamente, e não me viu. Olhava, sem tirar os olhos, para o prédio onde eu morava.
Eu andei, levei as crianças para o balanço, voltei, mas continuei pensando no homem; de onde o conhecia? Aí, caiu a ficha. Era ele, o azulejeiro, com quem eu tinha convivido durante tanto tempo; não chegamos a fazer camaradagem porque ele era muito calado e respeitoso, mas quando duas pessoas se vêem a cada dois dias, alguma relação se estabelece, é claro. Mas quando o prédio ficou pronto, eu, eufórica com a mudança, me esqueci de que ele -tão importante na minha vida por um tempo- existia. E ali estava ele, provavelmente já trabalhando em outra obra, sentado num banco de jardim, sozinho, olhando o prédio que havia ajudado a construir e onde jamais teria a chance de entrar. Se chegasse na portaria, o porteiro seria capaz de chamar a polícia.
Fiquei mal; não era o caso de chegar perto, estender a mão, perguntar por onde andava, como ia a vida. Por onde ele andava eu bem imaginava: colocando azulejos. Fiquei pensando: o que é que ele estava fazendo ali, no seu dia de folga, quando poderia estar na praia, no futebol, no cinema, tomando uma cerveja com um amigo? Estava claro: ele foi ver sua obra concluída, com o orgulho que tem qualquer trabalhador -que seja um pintor, um operário ou um intelectual- de ver seu trabalho pronto e bem feito.
Foi difícil. Não poderia convidá-lo para subir, sentar no sofá de plumas, mostrar a casa pronta e oferecer um café, para que ele não sentisse a distância entre nossos mundos.
E fiz o melhor -ou o pior. Saí fingindo que não o tinha visto e sentindo o quanto este mundo é injusto.

danuza.leao@uol.com.br



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