São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2008

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De volta à rotina com um novo coração

Rodrigo Marques, 4, passa em casa seu primeiro Dia da Criança após receber um órgão transplantado

CLÁUDIA COLLUCCI
DA REPORTAGEM LOCAL

Com uma espada fictícia nas mãos, Rodrigo luta contra o Batman na sala de sua casa, no Capão Redondo (zona sul de São Paulo). Só sossega quando quebra a cabeça do pequeno boneco. Contrariado, pede ao pai um tubo de cola para consertá-lo. "É que eu sou muito forte", justifica o garoto.
Sim, Rodrigo de Melo Marques, 4, é muito forte. No ano passado, ele esteve entre a vida e a morte durante sete meses no InCor (Instituto do Coração) à espera de um transplante de coração. Na cama da UTI pediátrica, viu morrer outras sete crianças que também precisavam de um órgão, mas que sucumbiram na fila de espera.
O garoto tinha miocardiopatia restritiva, uma doença que leva à fibrose progressiva do músculo cardíaco. Nessa situação, não há o adequado bombeamento de sangue para outros órgãos, que progressivamente entram em falência.
"Ele ficava com a boca azul, e a barriga inchava muito. Precisou fazer diálise porque os rins e o fígado pararam. No auge do desespero, eu dizia: "Deus, ele é seu. Eu apenas cuido. Não suporto vê-lo sofrer tanto. Se é para ficar comigo, que seja com saúde'", lembra a mãe, a bancária Cláudia de Melo Marques, 39, que ficou um ano longe do trabalho para cuidar do filho.
E havia mais desafios pela frente. Na semana que antecedeu o transplante, Rodrigo não tinha mais veia no corpo para receber a medicação. Os médicos não viram outra alternativa senão abrir o tórax do menino para injetar o remédio diretamente no coração. "Foi o sétimo caso no Brasil [a fazer o procedimento]. Era a única forma de mantê-lo vivo", lembra a cardiologista Estela Azeka, que coordena a equipe clínica de transplante infantil do InCor.
O novo coração de Rodrigo chegou no dia 12 de dezembro de 2007, dez dias após ele completar quatro anos. A doadora foi uma menina de cinco anos, de Bragança Paulista (SP), que morreu após se sufocar com uma uva na garganta.
"Por ocasião do transplante, Rodrigo estava no fim, em estado terminal. Precisava de drogas para manter a pressão arterial, respirador artificial e diálise. Crianças com o mesmo quadro clínico não sobreviveram", diz Miguel Barbosa Maciel, diretor da Unidade Cirúrgica Cardíaca Pediátrica do InCor.
"Ele tem um anjão da guarda. Conseguiu superar todas as complicações que apareceram. A resistência foi impressionante", emenda Estela Azeka.
De coração novo, em menos de 48 horas Rodrigo já comia e respirava sem aparelhos, mas voltou a ter infecções e complicações renais e no fígado que o mantiveram por mais dois meses no InCor. Também enfrentou uma depressão e teve de incorporar os antidepressivos à imensa lista diária de remédios.
"De repente, ele ficou quieto, parado. Não queria comer, não queria falar, não assistia aos DVDs que ele adora. Era um outro Rodrigo", conta a mãe. Para ela, o ambiente inóspito da UTI pós-operatória detonou o processo. "Não dava para saber se era dia ou noite, toda hora tinha gente morrendo. Eu mesma quase enlouqueci."
Hoje, Rodrigo leva uma vida praticamente normal, exceto pelos remédios que precisa tomar, como os imunossupressores para evitar que o organismo rejeite o órgão transplantado. Adora arroz, feijão, batata e carne. Torce o nariz para legumes e verduras. No dia da entrevista, devorou um pedaço de pizza de frango com Catupiry.
Os quase 270 dias de permanência no InCor despertaram no menino a paixão pela dança e pela música sertaneja. "É country", corrige Rodrigo, fã das duplas sertanejas Edson e Hudson e Rio Negro e Solimões. "Ele não se cansa de assistir aos DVDs. Dança e canta todas as músicas. Na UTI, todo entubado, ele ficava balançando os pés", lembra Cláudia.
O menino se apressa em mostrar o que aprendeu durante a internação: escreve o nome e desenha um caminhão. No colo da mãe, diz, em inglês, as cores dos cateteres por onde recebia medicação. "Red, blue, yellow, black, white."
O "momento escola" de Rodrigo dura pouco. Logo ele está correndo e jogando bola com o irmão, Vinícius, 10. "Ele não pára. Parece que quer recuperar o tempo que passou na cama, cheio de fios e tubos. É uma peça", diz o pai, o autônomo Alexandre Marques, 38.

70%
das crianças com indicação de transplante no Incor morrem na fila de espera


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