São Paulo, terça-feira, 13 de junho de 2006

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RUBEM ALVES

A vaca e a ursa pastarão juntas...

São Francisco usava o fogo sagrado para aquecer a alma, Torquemada o usava para churrasquear hereges

PROFECIA: FIQUEI pasmo com a fotografia que a Folha publicou: o Lula e o Quércia, apertando as mãos, sorridentes, como grandes amigos, aliados num projeto comum para o Brasil! Quem diria! Mas o pasmo do meu rosto logo se desfez e foi substituído por um sorriso de felicidade! Dei-me conta de que ali, na fotografia, estava o cumprimento de uma antiga profecia que anunciou que, no fim dos tempos, "a vaca e a ursa pastarão juntas..." (Isaías 11.7).
Deus cumpre o que promete. Mas os meus recursos hermenêuticos me falham: não consegui identificar nem a vaca nem a ursa...

 

Ética e trapaça: O sociólogo Peter Berger escreveu livrinho delicioso:
"Introdução à Sociologia". Um dos seus capítulos tem um título estranho: "Como trapacear e se manter ético ao mesmo tempo". Estranho à primeira vista. Mas logo se percebe que, na política, é de suma importância juntar ética e trapaça. Para explicar vou contar uma historieta: havia numa cidade dos Estados Unidos uma igreja batista. Os batistas, como se sabe, são um ramo do cristianismo muito rigoroso nos seus princípios éticos. Havia na mesma cidade uma fábrica de cerveja que, para a igreja batista, era a vanguarda de Satanás.
O pastor não poupava a fábrica de cerveja nas suas pregações. Aconteceu, entretanto, que, por razões pouco esclarecidas, a fábrica de cerveja fez uma doação de 500 mil dólares para a dita igreja. Foi um auê. Os membros mais ortodoxos da igreja foram unânimes em denunciar aquela quantia como dinheiro do Diabo e que não poderia ser aceito.
Mas, passada a exaltação dos primeiros dias, acalmados os ânimos, os mais ponderados começaram a analisar os benefícios que aquele dinheiro poderia trazer: uma pintura nova para a igreja, um órgão de tubos, jardins mais bonitos, um salão social para festas. Reuniu-se então a igreja em assembléia para a decisão democrática.
Depois de muita discussão registrou-se a seguinte decisão no livro de atas: "A Igreja Batista Betel resolve aceitar a oferta de 500 mil dólares feita pela Cervejaria na firme convicção de que o Diabo ficará furioso quando souber que o seu dinheiro vai ser usado para a glória de Deus."
 

Fui sabatinado por quatro jornalistas da Folha e por aqueles que estavam no teatro. Dos ouvintes veio-me uma pergunta: "Você acredita em Deus?" Como a pergunta era vaga perguntei: "Qual Deus?" O perguntador ficou atrapalhado. Expliquei: "Sim, porque há muitos deuses, cada um com a cara e o coração daquele que o tem dentro do peito. O Deus de São Francisco não era o Deus de Torquemada. São Francisco usava o fogo sagrado para aquecer a alma, Torquemada usava fogo sagrado para churrasquear hereges. As fogueiras que eram a diversão do povo". A pessoa não soube me esclarecer. Aí eu tomei a iniciativa e confessei: "Sou um construtor de altares. Construo meus altares com poesia e música. Eu os construo na beira de um abismo profundo, escuro e silencioso..."


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