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MOACYR SCLIAR
O preço da felicidade
Vibrou com o estudo sobre os fatores que fazem as pessoas felizes: ela queria uma posição científica
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Para saber até que ponto dinheiro
compra felicidade, estatísticos analisaram um banco de dados gigantesco. A renda é um dos fatores que
tem aí peso importante. Diz Daniel
Kahneman, da Universidade Princeton: "Uma renda pequena exacerba as dores emocionais associadas
a problemas como divórcio, doença
ou solidão". As condições para a felicidade são: ser religioso, não ser
jovem, ter plano de saúde, ter curso
superior, ser casado, ter filhos, e ganhar mais de R$ 6.800 por mês.
FOLHA.COM
QUANDO LHE PERGUNTAVAM se
ela era feliz, sempre vacilava na resposta. Acabava respondendo afirmativamente, mas não sem certa inquietação: no fundo, no fundo, sempre ficava a dúvida.
Sobretudo porque -segundo
achava- felicidade era algo que
não poderia ser quantificado, coisa
que a ela, assessora para assuntos
de estatística em uma grande empresa de relações públicas, incomodava, e muito.
Foi então que deu com o estudo
americano acerca dos fatores que
tornam as pessoas felizes. Vibrou:
era exatamente o que ela queria, um posicionamento objetivo, científico.
E mais satisfeita ficou quando leu a lista dos critérios de felicidade.
Religião: sim, ela era religiosa; não muito, mas acreditava em Deus, ia à igreja com certa regularidade.
Não ser jovem: aos 43, achava que
tinha deixado a mocidade para trás
e ingressara, com confiança e tranquilidade, na faixa madura. E tinha
curso superior e um bom plano de
saúde (que quase não usava: ficar
doente, no caso dela, era raridade) e
era casada e mãe de duas filhas maravilhosas. Feliz, portanto? Completamente feliz?
Não exatamente. Faltava uma
condição a ser preenchida: o salário. Segundo o estudo, para ser feliz
ela deveria ganhar R$ 6.800 ou
mais por mês. E não ganhava isso.
Seu salário era de exatos R$ 6.750.
Faltavam cinquentinha, portanto. O
que, para uma perfeccionista como
ela, era absolutamente decisivo. Alguma coisa precisava ser feita. Mas
o quê? Pedir aumento? Problema:
recentemente seu salário crescera
em cerca de 30%. E, se dissesse para o chefe que se tratava de algo simbólico, o homem provavelmente
acharia que ela tinha perdido o juízo e talvez até a despedisse.
Optou por outra solução, insólita,
mas menos arriscada: pediria uma
minimesada ao marido. Naquela noite, os dois já estavam na cama, tocou no assunto.
Antes não o tivesse feito. A reação
dele foi a pior possível. Acendeu a
luz e ficou a mirá-la, com uma irritação que nele, homem paciente, não
era comum. Quando ela explicou
que se tratava apenas de preencher
uma precondição para alcançar a
felicidade, teve um verdadeiro ataque de fúria: por fim a idiota que ela
sempre fora agora se revelava, naquele pedido maluco, supersticioso
mesmo. Bufando, virou para o outro lado e adormeceu.
Ela passou a noite em claro, chorando em silêncio. E de madrugada
tomou uma decisão: a partir do dia
seguinte sairia pela rua e pediria a
desconhecidos uma nota de cinquenta. Aquele que lhe desse o dinheiro, sem nada perguntar, sem
nada estranhar, aquele seria o homem de sua vida. A ele se entregaria. E com ele, disso estava segura,
seria feliz, completamente feliz.
MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias
publicadas no jornal.
moacyr.scliar@uol.com.br
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