São Paulo, domingo, 13 de setembro de 1998

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GILBERTO DIMENSTEIN
O jeitinho brasileiro é crime

O templo da Igreja Universal do Reino de Deus em Osasco, onde morreram 25 fiéis, tinha alvará para funcionar apenas como cinema.
Esse documento foi descoberto durante a investigação sobre as causas do desabamento.
Desde 1995, havia notícias na imprensa sobre a insegurança do prédio, revelando a combinação de irresponsabilidade privada e omissão pública.
O desabamento do templo compõe a série de quatro tragédias do mês de setembro, desenhando um retrato da capacidade brasileira de conviver desnecessariamente com o perigo.
O que se traduz numa única palavra: desrespeito.
O desrespeito está por trás do teto que cai, mas também da perna decepada do campeão de iatismo Lars Grael, dos corpos queimados dos romeiros que voltavam de ônibus de Aparecida -e, por fim, da taxa de juros que saltou para 50%.
É a face perversa do jeitinho brasileiro.


Quando olhamos cada uma dessas tragédias, constatamos sem dificuldades que poderiam ter sido evitadas ou, no mínimo, amenizadas.
A última vistoria do Corpo de Bombeiros no templo ocorreu em 1996; a validade se esgotou em agosto do ano passado.
Há sinais de descuido no acidente que provocou a morte de 54 pessoas na rodovia Anhanguera, ocorrido na madrugada de terça-feira.
A polícia colheu depoimento de uma testemunha, informando ter alertado o motorista sobre a cortina de fumaça na estrada; sugeriu que reduzisse a velocidade.
O motorista desconsiderou, não viu importância na fumaça e acabou dentro do fogo.
O culpado pelo acidente que decepou a perna de Lars Grael estava embriagado. Logo, com seus controles afetados.

A tragédia que mais abalou o país veio de Brasília -e tem tudo a ver com o que aconteceu no templo, no ônibus e na lancha.
Não são poucas as vozes que têm alertado (e faz muito tempo) governo e Congresso para a necessidade urgente de reformas que reduzissem a bagunça dos gastos públicos.
Não se acreditou que era urgente. Assim como o motorista não viu perigo na fumaça.
Aos olhos dos investidores e especuladores, com tamanho déficit orçamentário combinado com balança comercial desfavorável, somos uma nação frágil.
A crise internacional veio para todos, óbvio. Atingiu mais pesado quem estava mais vulnerável.

Com o país pegando fogo, são anunciados às pressas mais cortes e jogam-se os juros na estratosfera.
Quantos empregos não serão perdidos pela falta de cautela?
Ou quantos projetos sociais, agora retardados, não reduziriam a mortalidade infantil?
A crise social se traduz na prática em milhões de fragmentadas tragédias humanas.

Quem quiser ver em números, leia o último relatório com o Índice de Desenvolvimento Humano, da ONU.
Estamos bem abaixo em saúde e educação do que nações bem mais pobres.
Em educação, por exemplo, estamos colocados abaixo do Paraguai e Suriname.
Só a eleição justifica que o presidente Fernando Henrique Cardoso apresentasse o relatório orgulhosamente.
Não significa que não tenhamos avanços no país. Temos, e muitos.
Mas não dá para comemorar, tamanha a distância entre o que somos e o que poderíamos ser.

Diante das tragédias, temos o dom de encontrar rapidamente o culpado -são os outros.
Na assessoria presidencial, semana passada, atribuía-se a responsabilidade da crise à Rússia, ao caso amoroso de Bill Clinton, ao Congresso e à falta de espírito público dos especuladores -todos fatores que, obviamente, influem.
É uma perplexidade semelhante à do bispo Edir Macedo. Não conseguia entender tal castigo para quem não estava numa boate, mas num templo, orando, alcançando a Deus.

A explicação é mais simples: os outros, somos nós.
Compreensível economicamente que não tenhamos uma sistema educacional como da Alemanha ou Suécia.
Mas abaixo do Suriname ou Paraguai?
Aí só pode ser explicado pela perversidade moral do jeitinho brasileiro que, no dia-a-dia, significa pura e tão somente impunidade.
Pagamos um preço por, no fundo, acreditarmos coisas como sermos, independentemente de esforço, o "país do futuro" ou de que "Deus é brasileiro".

PS - Exemplo de responsabilidade vai ser visto amanhã em São Paulo. Serão diplomados 400 dentistas brasileiros que entraram na campanha "adotei um sorriso".
Eles se comprometem a cuidar gratuitamente de crianças carentes até chegarem aos 18 anos.
Não vão ficar mais pobres. Talvez até ganhem dinheiro, já que vão poder ostentar um selo em seu consultório, atraindo a simpatia dos clientes.
É das idéias que não custam nada para ninguém e conseguem, rapidamente, melhorar a vida da comunidade.


E-mail:gdimen@uol.com.br


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