São Paulo, quinta-feira, 13 de novembro de 2008

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PASQUALE CIPRO NETO

"Guerreei na juventude"


Os que vêem algum desvio em "guerreei" devem supor que haja algum problema na terminação "eei". Não há

NA SEMANA PASSADA, trocamos duas palavras sobre a letra de uma canção de Cartola, em que o grande compositor empregou a forma verbal "premeia" ("Eis que Jesus me premeia"). Apoiando-me num texto de Luís Nader, informei que alguns dos supostos interessados em gravar a música desistiram da empreitada, justamente por causa do "erro" nessa flexão verbal.
Pois o próprio Luís Nader me escreveu para informar que outra flexão verbal presente na antológica letra de Cartola causou polêmica e foi apontada por alguns críticos como "errada". Trata-se de "guerreei", presente nesta passagem: "Guerreei na juventude, / Fiz por você o que pude, Mangueira". "Devo ter faltado a essa aula, pois não percebo erro algum", diz Nader, que (eu não sabia) foi meu aluno no já longínquo 1989.
Não sei se Nader faltou à tal aula, mas vejo que ele não precisou dela para saber que de fato não há erro algum em "guerreei". Os que vêem desvio em "guerreei" talvez suponham que haja algum problema na terminação "eei", que ocorre na primeira pessoa do singular do presente do indicativo de todos os verbos terminados em "-ear" ("desnorteei", "receei", "penteei", "clareei", "presenteei", "cabeceei", "guerreei" etc.).
De fato (e cá entre nós), a grafia desse bendito grupo "eei" não é flor que se cheire. Na prática, é muito mais comum que o emitamos como "iei" (quem é que nunca disse "Pentiei o cabelo" ou "Clariei a roupa"?).
É sempre bom lembrar que grafia é, antes de tudo, convenção. E o que diz a convenção nesse caso?
Vamos por partes. Temos aí o pretérito perfeito do indicativo de verbos terminados em "-ar". Apanha-se o radical desses verbos (obtido com a supressão do grupo "-ar" do infinitivo) e acrescentam-se as terminações regulares desse tempo, que são as seguintes: "-ei", "-aste", "-ou", "-amos", "-astes", "-aram".
Quer fazer o teste? Pois apanhe o radical de qualquer verbo regular terminado em "-ar" e anexe a ele as terminações que encerram o parágrafo anterior. Vamos lá: o radical de "andar" é "and-", certo? Pois ao radical "and-" anexe "-ei", "-aste", "-ou", "-amos", "-astes", "-aram".
Que saiu disso? Vamos lá: "andei, andaste, andou, andamos...".
Agora voltemos ao glorioso verbo "guerrear", cujo radical é... Antes é preciso lembrar que, no presente do indicativo (e nos tempos derivados), os verbos terminados em "-ear" apresentam uma irregularidade. Tomemos como exemplo o próprio verbo "guerrear": "guerreio, guerreias, guerreia, guerreamos, guerreais, guerreiam". Como se vê, surge um "i" depois do radical em quatro flexões (o que não ocorre nos regulares: "ando, andas, anda, andamos, andais, andam").
Mas voltemos ao verbo "guerrear", cujo pretérito perfeito é regular (como o é o de todos os verbos terminados em "-ear"). Qual é mesmo o radical desse verbo? É "guerre-" (não esqueça que se obtém o radical com a eliminação da terminação "-ar": "guerrear" -"ar" = "guerre-"). Pois bem. Ao radical "guerre-" acrescentaremos as terminações "-ei", "-aste", "-ou"... Já fez as contas? O resultado só pode mesmo ser "guerreei", "guerreaste", "guerreou", "guerreamos...".
Como se vê, o grande Cartola mais uma vez tinha razão. É isso.

inculta@uol.com.br


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