São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 2007

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"Dirces" colecionam piercings, tatuagens e livros de receita

O que caracteriza essas garotas é ter afinidades domésticas que foram praticamente riscadas do manual da mulher moderna, como fazer um bolo e compota

MARIANNE PIEMONTE
DA REVISTA DA FOLHA

Americanos gostam de classificar tendências de comportamento usando pedaços de palavras e siglas como hippies, yuppies, teens, emos. Loucos por um cartório, os brasileiros preferem fulanizar, para usar o verbo cunhado pelo ex-presidente sociólogo: nossos tipos envergam nome próprio, como patricinha, mauricinhos, camilinhas e plínios. E tem novidade: as dirces.
Não se sabe quem inventou, mas a razão da escolha é fácil de entender. Dirce (que me perdoem as que o carregam desde o batismo) é um nome passadista, que remete àquela parenta idosa e fofa, nunca às moças das últimas gerações -exatamente as que "estão" dirces.
O que caracteriza o tipo é uma espécie de nota dissonante, o pé num certo passado, improvável numa figura absolutamente urbana: quem dirá que, por baixo daquela mulher com visual moderno, roupas alternativas, tatuagens e piercings à mostra, vive uma tia-avó modelo original, daquelas que colecionam cadernos de receita, fazem compotas e nunca deixam móvel sem toalhinha?
"Usamos um nome antigo porque reproduzimos, por opção e gosto, algo que as nossas mães e avós eram obrigadas a fazer", diz a atriz Fafi Prado, 36.
"Algo", no caso, são as afinidades domésticas que foram riscadas do manual da mulher moderna, que nasceu com o movimento feminista e caiu de boca na vida profissional. Boa parte delas, aliás, transformou a frase "não sei nem fritar ovo" em bandeira libertária. As dirces, gente pouco antes e pouco depois dos 30, surgem como um desvio nesse gráfico.
Quem visita Fafi se sente na casa de uma tia octogenária. Além dos azulejos de arabescos, do filtro de barro e das toalhinhas de crochê, a atriz costuma receber as amigas com gelatina colorida, aquela feita no creme. "Sei que não é prático, mas nunca mais abri uma lata de molho de tomate", conta.
Alguns itens são básicos no figurino. "Quem me conhece no trabalho não imagina que eu goste de toalha de crochê", diz a figurinista Drica Cruz, 33.
Drica tem sua teoria para o "ser dirce". "Corremos tanto, em trabalhos tão malucos, muitas vezes virando noite, que a "dircisse" é uma quebra fundamental nesse ritmo insano."
Mãe caloura de Caio, 8 meses, a figurinista é mãe tradicional: é ela quem seleciona os legumes e faz a papinha do bebê.

Filosofia
Desmentindo o visual muitas vezes até um pouco agressivo, as dirces parecem um poço de candura, conjugando com freqüência frases inesperadas, do tipo "o importante é ter saúde".
As melhores costumam ganhar a lousa da geladeira de Helena Fagundes, 28, assistente de programação da MTV e baterista de uma banda recém-formada que ensaia rocks com letras que falam de dor-de-cotovelo e problemas existenciais. O nome: Las Dirces.
"A piada ficou inevitável quando percebemos que também gostávamos de coisas de gente velha, como tapeware, poltrona de flor e chá com bolo feito em casa", conta Helena.
O ritual do chá da tarde fica com a guitarrista da banda, a designer gráfica Eliane Testone, 28. "Mas não tem essa de som ambiente com bossa nova, não. Na trilha sonora tem que rolar rock'n roll", ressalva.
Como dirce que é dirce tem livro de receitas, Eliane também tem o dela, mas em forma de fanzine, com poesias, ilustrações e trabalhos autorais. Para coroar, os pratos da bateria são transportados numa sacola de feira; durante o show, enquanto as moças descem a lenha, a sacola fica pendurada na parede como um estandarte. Mais dirce, impossível.


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