|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MOACYR SCLIAR
Espaço vital
Como a mulher a seu lado, ele era corpulento; o braço da poltrona não acolheria os cotovelos de ambos
|
Etiqueta no avião: quem tem direito ao braço da poltrona? Mônica Bérgamo, 3 de janeiro.
TÃO LOGO SENTARAM E AFIVELARAM os cintos de segurança
ele sentiu que o conflito começaria a qualquer momento. O conflito pelo braço da poltrona,
bem entendido, este território que,
ao menos na classe econômica (para
executiva ele não tinha grana), é
obrigatoriamente comum.
Como a mulher a seu lado, ele era
corpulento; e o braço da poltrona,
estreito, não acolheria os cotovelos
de ambos. Breve estaria desencadeada a luta pelo espaço vital, talvez
não tão sangrenta quanto a Segunda
Guerra na Europa, mas mesmo assim encarniçada.
Ela tomou a iniciativa. Tão logo o
avião decolou, e antes mesmo que a
comissária anunciasse: "Nosso tempo de vôo será de..." ela abriu o jornal. Um jornal grande, não um tablóide, não uma revista. Jornalão,
com muita coisa para ler, editoriais,
artigos, reportagens. E, o jornal
aberto, ela naturalmente ancorou o
cotovelo no braço da poltrona. Ancorou-o numa posição que não permitiria o ingresso ali de qualquer outro cotovelo.
Ele também tinha um jornal. Ele
também era um leitor assíduo. Mas
a verdade é que ela se antecipara na
manobra, e agora qualquer tentativa
dele no sentido de manifestar interesse nas notícias do país e do mundo não passaria de uma medíocre, e
até vergonhosa, imitação. Portanto,
um a zero para ela.
Mas ele não desistiria. Desistir? De
maneira alguma. Como se diz no
Sul: "Não está morto quem peleia", e
ele ainda tinha muito a pelear. Agora, porém, adotaria uma tática diversa. Uma falsa retirada, destinada a dar à dona do poderoso cotovelo
uma ilusória sensação de definitiva
vitória. Inclinou a poltrona, bocejou,
fechou os olhos e fingiu dormir.
Mas, por entre as pálpebras semicerradas, observava-a. Aparentemente, ela continuava absorvida na
leitura. Ele resolveu tentar um ataque sub-reptício, tipo atentado terrorista. Como se fosse um movimento automático, colocou o cotovelo sobre o braço da poltrona. Torceu para que a aeronave entrasse
numa área de turbulência, o que
acabou acontecendo.
No primeiro solavanco o cotovelo
dele empurrou, como que por acidente, o cotovelo dela para fora. E ali
ficou triunfante, como aqueles soldados que, na batalha de Iwo Jima,
desfraldaram a bandeira americana.
Ela continuava lendo o jornal. Mas
ele sabia que, no fundo, ela estava remoendo a raiva e planejando a vingança. Que planejasse. Ele não entregaria jamais a sua conquista.
E aí o problema, o inesperado problema. De repente sentiu vontade
de urinar. Muita vontade de urinar.
Que fazer?
Se levantasse, perderia o braço da
poltrona e nunca mais o recuperaria. Durante longos minutos debateu-se em dúvida cruel. E aí, misericordiosamente, o comandante
anunciou que estavam pousando.
Ela fechou o jornal, voltou-se para
ele:
- Você sabe que dia é hoje?
Ele não sabia. Ela sorriu, como mãe
diante de filho travesso, e revelou:
era o aniversário de casamento de
ambos. Trinta e cinco anos de matrimônio. Trinta e cinco anos partilhando sonhos, angústias, o cuidado
dos filhos. E ah, sim, braços de poltrona em aviões.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
Texto Anterior: Suspeita fecha parque e zôo em Cascavel, no PR Próximo Texto: Consumo: Psicóloga não consegue pôr crédito em telefone da Embratel Índice
|