São Paulo, domingo, 14 de fevereiro de 2010

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Profissão mulata

Longe dos holofotes e do célebre posto de rainha de bateria, passistas sambam o ano inteiro em shows e acumulam empregos, de manicure a vendedora de sacolé, tudo para manter viva a fantasia

AUDREY FURLANETO
DA SUCURSAL DO RIO

Elas não são atrizes, mas talvez possa se dizer que são malabaristas. Conciliam, com a mesma ginga de quadris, os trabalhos "oficiais" -de manicure, cozinheira, mãe, avó, dona de casa, cabeleireira ou todas as anteriores- e o Carnaval.
Gisele Cabral, 21 anos, três de Beija-Flor, Márcia Anjo, 35 anos, 15 entre várias escolas de samba do Rio, e Fernanda Costa, 32 anos, 16 na Unidos da Tijuca, trabalham o ano inteiro por um momento de sonho, que, no caso delas, não se acaba na Quarta-Feira de Cinzas.
Elas ficam à disposição das escolas ao longo do ano e ganham a partir de R$ 150 por show. Sambam na quadra, em eventos fechados ou em casas com plateia estrangeira. Tudo distante do glamour e das plumas de faisão que envolvem as famosas rainhas de bateria.
A carreira de uma passista "real", como Márcia Anjo, passa por fazer sacolés, quentinhas e penteados em noivas, cuidar de 14 crianças, entre filhos, netos e sobrinhos, e sambar, neste Carnaval, no Império Serrano.
Os obstáculos chegaram cedo na vida de Anjo: foi achada no lixo pelo pai, um gari, que a adotou; teve o primeiro filho aos 15. Vive no Complexo do Alemão, conjunto de 13 favelas controladas pelo Comando Vermelho. Há oito anos, impôs a si um novo desafio: "Perder 100 kg".
Ela decidiu emagrecer quando ouviu de outra passista um "olha o elefantinho no samba!". Hoje, tem 54 kg espalhados pelo seu corpo de 1,74 m de altura.
E não precisou trocar a massa pela saladinha. "Salada na favela é caô! Como o que tem, nega. Com 14 meninos, é arroz, feijão, macarrão e frango."
Eram os sacos de feijão e arroz que usava como peso para malhar. Como "os sacos não param mais cheios", passou a usar embalagens de 15 kg de areia.
Criou um creme contra estrias, que guarda em segredo, e usa manteiga como bronzeador. "Quando você assa um frango, passa o que por cima?"
Com a agenda lotada, Anjo malha à noite, antes de dormir -ou antes de fazer dormir Nina, a neta abandonada pela mãe, que é viciada em crack. "Eu, cheia de brilho, olho verde [lentes de contato], chego às 5h e faço o bebê voltar a dormir."
Solteira, diz que teve chances de "mudar de vida". Certa vez, após uma noite na quadra, um homem abriu a porta do carro e disse: "Entra? R$ 10 mil". Anjo não foi. "Meu caráter é forte."
Ela completa: "Mulata vira prostituta porque a sociedade obriga. Tem que ter bom sapato, boa bolsa, as melhores penas. Se não, fora do show".
Anjo diz que se vira com os bicos na favela e com o cachê de R$ 500 por apresentação: "Eu dou meu jeito de brasileira, gata! Vou de madrugada ao camelô, compro tudo mais barato. Minha felicidade é um pouquinho assim. Você vai entender quando eu vestir a fantasia."


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