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Profissão mulata
Longe dos holofotes e do célebre posto de rainha de bateria, passistas sambam o ano inteiro em shows e acumulam empregos, de manicure a vendedora de sacolé, tudo para manter viva
a fantasia
AUDREY FURLANETO
DA SUCURSAL DO RIO
Elas não são atrizes, mas talvez possa se dizer que são malabaristas. Conciliam, com a
mesma ginga de quadris, os trabalhos "oficiais" -de manicure, cozinheira, mãe, avó, dona
de casa, cabeleireira ou todas as
anteriores- e o Carnaval.
Gisele Cabral, 21 anos, três de
Beija-Flor, Márcia Anjo, 35
anos, 15 entre várias escolas de
samba do Rio, e Fernanda Costa, 32 anos, 16 na Unidos da Tijuca, trabalham o ano inteiro
por um momento de sonho,
que, no caso delas, não se acaba
na Quarta-Feira de Cinzas.
Elas ficam à disposição das
escolas ao longo do ano e ganham a partir de R$ 150 por
show. Sambam na quadra, em
eventos fechados ou em casas
com plateia estrangeira. Tudo
distante do glamour e das plumas de faisão que envolvem as
famosas rainhas de bateria.
A carreira de uma passista
"real", como Márcia Anjo, passa por fazer sacolés, quentinhas
e penteados em noivas, cuidar
de 14 crianças, entre filhos, netos e sobrinhos, e sambar, neste
Carnaval, no Império Serrano.
Os obstáculos chegaram cedo
na vida de Anjo: foi achada no
lixo pelo pai, um gari, que a adotou; teve o primeiro filho aos 15.
Vive no Complexo do Alemão,
conjunto de 13 favelas controladas pelo Comando Vermelho.
Há oito anos, impôs a si um novo desafio: "Perder 100 kg".
Ela decidiu emagrecer quando ouviu de outra passista um
"olha o elefantinho no samba!".
Hoje, tem 54 kg espalhados pelo seu corpo de 1,74 m de altura.
E não precisou trocar a massa pela saladinha. "Salada na favela é caô! Como o que tem, nega. Com 14 meninos, é arroz,
feijão, macarrão e frango."
Eram os sacos de feijão e arroz que usava como peso para
malhar. Como "os sacos não param mais cheios", passou a usar
embalagens de 15 kg de areia.
Criou um creme contra estrias, que guarda em segredo, e
usa manteiga como bronzeador. "Quando você assa um
frango, passa o que por cima?"
Com a agenda lotada, Anjo
malha à noite, antes de dormir
-ou antes de fazer dormir Nina, a neta abandonada pela
mãe, que é viciada em crack.
"Eu, cheia de brilho, olho verde
[lentes de contato], chego às 5h
e faço o bebê voltar a dormir."
Solteira, diz que teve chances
de "mudar de vida". Certa vez,
após uma noite na quadra, um
homem abriu a porta do carro e
disse: "Entra? R$ 10 mil". Anjo
não foi. "Meu caráter é forte."
Ela completa: "Mulata vira
prostituta porque a sociedade
obriga. Tem que ter bom sapato, boa bolsa, as melhores penas. Se não, fora do show".
Anjo diz que se vira com os
bicos na favela e com o cachê de
R$ 500 por apresentação: "Eu
dou meu jeito de brasileira, gata! Vou de madrugada ao camelô, compro tudo mais barato.
Minha felicidade é um pouquinho assim. Você vai entender
quando eu vestir a fantasia."
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