São Paulo, domingo, 14 de março de 2004

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DANUZA LEÃO

A falta de juízo

Voltar aos 20 anos, sabendo de tudo que se sabe agora, é o sonho de quase todas as pessoas. Mas seria bom mesmo? E quais as vantagens?
Ok, você estaria lindinha, com tudo no lugar, sem uma só microcelulite para contar a história, os cabelos brilhando e nem um músculo no corpo, já que a carne está tão durinha que parece que saiu do freezer. Com todos esses atributos, estaria pronta para ser a dona do mundo e, com juízo, não faria as bobagens que já fez, como preferir acampar no fim do ano com o namorado -pobre e que ainda por cima aprontava- a aceitar aquele convite para participar de um cruzeiro incrível onde a cada passo surgiria uma oportunidade -de um novo trabalho, de uma nova viagem, de um novo amor (rico, é claro). Mas valeu, não valeu?
Ok, ter juízo é o que se almeja na vida, e só o tempo -e as pauladas que se leva- ensina. Mas cá entre nós: não ter juízo nenhum e não medir as conseqüências do que se faz é a melhor coisa do mundo. Pense nas loucuras que já fez e responda sinceramente: não foi bom demais?
Lembra quando, para passar o fim de semana fora, era preciso inventar uma grande mentira para a família? Dizia que ia para casa de uma amiga na praia -com os pais presentes, claro; não tinham telefone, mas você não ia esquecer de ligar.
Até ligava, mas do bar, sentada no colo do namorado e tomando uma cerveja; o único problema era não deixar que nessa hora ele ficasse beijando sua orelha, só de provocação, para que a mãe não desconfiasse. Afinal, mãe também passou pela fase de não ter juízo e tem memória: do som de certas risadinhas nunca se esquece. E tem mais: no lugar de voltar no domingo à noite, você só aparecia na segunda à tarde. Seja sincera: hoje, com uma bela posição no mercado de trabalho, dois filhos adolescentes e um ex-marido controlando seus passos, você seria capaz de fazer metade disso? E a responsabilidade? E o exemplo? E a culpa?
A verdade é que a graça de ter 20 anos é exatamente não ter nem responsabilidade nem culpa, o que prova o quanto era melhor a vida antes de a gente ter crescido e se tornado um adulto de respeito. E afinal, de que adiantaria ter o corpo de 20 e a cabeça de um adulto de respeito? Para dizer a verdade, nada. Na-da.
Não se estava nem aí para coisa alguma. Tinha que chegar cedo da praia porque o almoço era à 1h? Simplesmente não se chegava; e daí? Ah, mas então não almoçava? Um ovo frito resolvia; e daí? O box do chuveiro ficava cheio de areia, para desespero da mãe e da empregada? E daí? Era um clima de mais ou menos "e daí" para tudo, o que fazia da vida uma coisa leve leve, que delícia.
E ninguém esquentava por falta de dinheiro. Se tinha um show, sempre havia alguém para descolar os convites; se não descolasse, e daí? Ficar azarando na porta já era um programaço, e sempre tinha um agito depois; um ou vários.
Beirar a irresponsabilidade, sair com a meia rasgada decretando que é moda, tirar do baú da avó uma echarpe velha toda puída pelas traças, enrolar no pescoço e ficar deslumbrante, mentir para a mãe com a cara mais limpa deste mundo, matar aula e chegar em casa com a cara bem sonsa e vermelha de sol, não era ótimo?
Pensando bem, estou desconfiada de que a grande graça mesmo não era ter 20 anos, e sim não ter juízo. E quem tiver a coragem de voltar a ser tão sem juízo como quando era jovem é bem capaz de nunca mais abrir a boca para dizer que tem saudades da juventude.


E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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