São Paulo, terça-feira, 14 de maio de 2002

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MARILENE FELINTO

Pedagogia do descaso: "Fefeleche" e escola de lata

De faculdades instaladas em "colmeias" a escolas arranjadas em "contêineres", o espírito de improvisação no sistema educacional público em São Paulo atravessa décadas incólume, e vai da universidade ao ensino básico.
"Colmeias" era como se chamava, nas décadas de 70/80, o aglomerado informal de salas de aula da faculdade de letras da Universidade de São Paulo (USP), abrigada sob a sigla FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), hoje vulgarmente chamada de "Fefeleche" pelos alunos.
"Escolas de lata" ou "escolas de latinha" são um tipo de contêiner de bloco metálico que a nefasta gestão Pitta/Maluf construiu (entre 1999 e 2000) e transformou em salas de aulas para alunos da periferia da cidade. O governo Covas/Alckmin imitou a prefeitura e mantém ainda hoje umas 30 catacumbas dessas na rede estadual. Tudo para alunos pobres e pequenos, para professores impotentes quase morrerem de calor e surdez num ambiente impróprio.
Com que dignidade vão crescer as crianças da escola de lata? Com que auto-estima? Eis aí o mais absurdo descaso com o espaço pedagógico dos discriminados e oprimidos, para usar palavras de Paulo Freire. E o presidente Fernando Henrique fica se gabando por aí de uma tal "revolução branca" que sua dinastia de oito anos teria provocado na educação do país. A revolução? Que mais de 90% das crianças e adolescentes em idade escolar estejam nas salas de aula -só falta acrescentar que as salas são de lata e que são superlotadas de alunos que não sabem ler nem escrever na 4ª série do ensino básico.
Voltemos à Fefeleche. Há mais de uma semana, os alunos da faculdade de letras, seguidos pelos dos outros cursos, entraram em greve por superlotação das salas (com até 130 alunos), falta de professores e suspensão de disciplinas. O curso de letras parece no fundo do poço. Tem uma média de um professor para cada 35,2 alunos. Na USP, a média padrão é de 14 para cada professor.
O problema não é novo, e só revela o desprestígio das ciências humanas mesmo dentro da comunidade acadêmica. A Fefeleche sempre foi a prima pobre das faculdades da USP. Imagine se a faculdade de arquitetura ou engenharia aceitariam amontoarem-se em "colmeias" ou nos barracões "da psicologia" dos anos 70? Na minha época, fim dos 70, meados dos 80, chamávamos a faculdade de "a letras", o que, segundo um dos professores de então, indicava o começo da decadência: ele, que fizera o curso na revolucionária rua Maria Antônia, no centro de São Paulo, nos anos 60, estranhava que não chamássemos corretamente o curso de "as letras".
Consta que a crise nas letras começou em 1990, quando a faculdade contava com 442 professores. Hoje, esse número caiu para 343 docentes, e a quantidade de alunos cresceu 20%. Ora, e o que foi feito em toda esta década? Tudo indica que ficaram assistindo ao número de alunos crescer e ao de professores diminuir.
A atitude é típica de um certo ar de elefante branco que a USP sempre teve -lerda e pesada. Mas a universidade foi tão importante na minha vida que eu perdôo quase tudo nela. Foi mais doce do que indigno frequentar as colmeias. Além do que, o buraco é mais embaixo, como se diz, e ultrapassa a USP: quem jamais se importou, afinal (no Brasil que vem se formando desde os anos 70, pelo menos), com as heranças da tradição, a literatura como estrutura estética, o culto da forma, a formação do "pensamento crítico" brasileiro? Importante para a academia é onda do clone (a técnica de engenharia genética e a novela, igualmente, que ninguém também se iluda).

E-mail - mfelinto@uol.com.br



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