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São Paulo, segunda-feira, 14 de julho de 2003

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MOACYR SCLIAR

Medicina insólita


1. Viúva-negra
Viúva-negra pode combater impotência masculina, diz estudo. Pesquisadores chilenos anunciaram que estão desenvolvendo uma pílula capaz de combater a impotência no homem. A droga baseia-se no veneno da viúva-negra (Latrodectus matans), aranha conhecida por matar o macho após o acasalamento. Ciência Online, 9.jul.03

Quem primeiro lhe falou acerca da nova pílula foi a esposa. Por óbvias razões: casados há várias décadas, ele já não correspondia às, digamos, expectativas dela, o que motivava queixas amargas: apesar da idade, a mulher ainda mostrava-se exuberante e os tórridos olhares que lançava para o jovem e elegante morador do apartamento ao lado comprovavam a intensidade de seu desejo. Não lhe restava, pois, alternativa. Entrou em contato com os pesquisadores chilenos, que o aceitaram entre os voluntários para o estudo. A droga realmente funcionava. Tão logo tomou as primeiras doses, sentiu o desejo voltar de forma avassaladora -para grata surpresa da esposa. Agora sim, dizia ela, agora você está mostrando que é homem. Claro que ele também podia pensar numa desforra: deixá-la por outra mais jovem, mais bonita. Mas a verdade é que a amava e ficaria com ela custasse o que custasse. E o tratamento lhe custaria caro. Porque, embora a libido fosse a de um moço, o corpo era de um velho; a cada relação sentia terríveis dores no peito. É o coração, disse o médico, e recomendou-lhe moderação. Um conselho que a mulher não aceitou. Agora que redescobrimos o sexo, vamos até o fim. Fim do quê? Fim de quem? O fim dele, claro. A pílula não era um remédio, era uma advertência. Que lhe chegava tarde demais. Como o macho da viúva-negra, ele não poderia escapar a seu destino.

2. A cirurgia revisitada
Sem equipamento, médico peruano opera com furadeira e alicate. Um cirurgião operou a cabeça de um paciente utilizando uma furadeira elétrica e um alicate porque o hospital público de Andahuaylas (sudeste do Peru), onde trabalha, carece de material cirúrgico adequado, informou a televisão peruana. Mundo Online, 10.jul.03

Faltava bisturi, faltava pinça, faltava afastador. O bravo doutor usava ferramentas do hospital, mas até essas eram escassas e ele já não sabia o que fazer. Fale com o Juan, disseram-lhe então.
O Juan tinha uma oficina, grande, bem aparelhada. Era uma espécie de faz-tudo: fabricava móveis, consertava carros e equipamento elétrico. Homem engenhoso, prestativo, colocou-se à disposição do médico, de início dando uma espécie de consultoria. Se o doutor tinha dúvidas acerca de que broca usar para perfurar um crânio, podia contar com os conselhos de Juan. A mesma coisa em se tratando de serra, de formão, de pinos, de cola, qualquer coisa. Curioso, Juan fazia questão de acompanhar as cirurgias, dando sugestões e conselhos. Um dia a auxiliar do médico ficou doente, e ele se prontificou a substituí-la. O doutor hesitou; afinal, Juan não tinha qualquer espécie de treinamento formal. Mas, tratando-se de emergência, acabou aceitando a oferta. Juan se saiu surpreendentemente bem, revelando uma habilidade inesperada. Daí em diante, era uma presença constante na sala de cirurgia. Cada vez mais deteriorada; o teto estava caindo, a água vazava dos canos. O hospital não podia mais atender pacientes; tiveram de fechá-lo.
O médico ficou desesperado. Alguns doentes ele poderia encaminhar para cidades vizinhas, mas não tinha como evitar as emergências. Nesse duro transe, foi ainda Juan quem lhe valeu. Vamos fazer uma oficina-hospital, propôs. Era um projeto que já vinha acalentando há algum tempo; ao lado da oficina poderiam instalar uma sala cirúrgica, com o que teriam rápido acesso às ferramentas. E para ele isso seria um grande prestígio.
O doutor ainda está pensando nesta possibilidade, que na verdade é muito estranha. Mas coisas estranhas não faltam no chamado Terceiro Mundo, um lugar onde só a imaginação consegue vencer a dura necessidade.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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