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MOACYR SCLIAR
Medicina insólita
1. Viúva-negra
Viúva-negra pode combater impotência masculina, diz estudo. Pesquisadores chilenos anunciaram que estão desenvolvendo uma pílula capaz
de combater a impotência no homem. A droga baseia-se no veneno
da viúva-negra (Latrodectus matans), aranha conhecida por matar o
macho após o acasalamento. Ciência
Online, 9.jul.03
Quem primeiro lhe falou
acerca da nova pílula foi a
esposa. Por óbvias razões: casados
há várias décadas, ele já não correspondia às, digamos, expectativas dela, o que motivava queixas
amargas: apesar da idade, a mulher ainda mostrava-se exuberante e os tórridos olhares que
lançava para o jovem e elegante
morador do apartamento ao lado
comprovavam a intensidade de
seu desejo. Não lhe restava, pois,
alternativa. Entrou em contato
com os pesquisadores chilenos,
que o aceitaram entre os voluntários para o estudo.
A droga realmente funcionava.
Tão logo tomou as primeiras doses, sentiu o desejo voltar de forma avassaladora -para grata
surpresa da esposa. Agora sim, dizia ela, agora você está mostrando que é homem. Claro que ele
também podia pensar numa desforra: deixá-la por outra mais jovem, mais bonita. Mas a verdade
é que a amava e ficaria com ela
custasse o que custasse.
E o tratamento lhe custaria caro. Porque, embora a libido fosse
a de um moço, o corpo era de um
velho; a cada relação sentia terríveis dores no peito. É o coração,
disse o médico, e recomendou-lhe
moderação. Um conselho que a
mulher não aceitou. Agora que
redescobrimos o sexo, vamos
até o fim.
Fim do quê? Fim de quem? O
fim dele, claro. A pílula não era
um remédio, era uma advertência. Que lhe chegava tarde demais. Como o macho da viúva-negra, ele não poderia escapar a
seu destino.
2. A cirurgia revisitada
Sem equipamento, médico peruano
opera com furadeira e alicate. Um cirurgião operou a cabeça de um paciente utilizando uma furadeira elétrica e um alicate porque o hospital
público de Andahuaylas (sudeste do
Peru), onde trabalha, carece de material cirúrgico adequado, informou
a televisão peruana. Mundo Online,
10.jul.03
Faltava bisturi, faltava
pinça, faltava afastador. O
bravo doutor usava ferramentas
do hospital, mas até essas eram
escassas e ele já não sabia o que
fazer. Fale com o Juan, disseram-lhe então.
O Juan tinha uma oficina, grande, bem aparelhada. Era uma espécie de faz-tudo: fabricava móveis, consertava carros e equipamento elétrico. Homem engenhoso, prestativo, colocou-se à disposição do médico, de início dando
uma espécie de consultoria. Se o
doutor tinha dúvidas acerca de
que broca usar para perfurar um
crânio, podia contar com os conselhos de Juan. A mesma coisa em
se tratando de serra, de formão,
de pinos, de cola, qualquer coisa.
Curioso, Juan fazia questão de
acompanhar as cirurgias, dando
sugestões e conselhos. Um dia a
auxiliar do médico ficou doente, e
ele se prontificou a substituí-la. O
doutor hesitou; afinal, Juan não
tinha qualquer espécie de treinamento formal. Mas, tratando-se
de emergência, acabou aceitando
a oferta. Juan se saiu surpreendentemente bem, revelando uma
habilidade inesperada. Daí em
diante, era uma presença constante na sala de cirurgia. Cada
vez mais deteriorada; o teto estava caindo, a água vazava dos canos. O hospital não podia mais
atender pacientes; tiveram de
fechá-lo.
O médico ficou desesperado. Alguns doentes ele poderia encaminhar para cidades vizinhas, mas
não tinha como evitar as emergências. Nesse duro transe, foi
ainda Juan quem lhe valeu. Vamos fazer uma oficina-hospital,
propôs. Era um projeto que já vinha acalentando há algum tempo; ao lado da oficina poderiam
instalar uma sala cirúrgica, com
o que teriam rápido acesso às ferramentas. E para ele isso seria um
grande prestígio.
O doutor ainda está pensando
nesta possibilidade, que na verdade é muito estranha. Mas coisas
estranhas não faltam no chamado Terceiro Mundo, um lugar onde só a imaginação consegue vencer a dura necessidade.
Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.
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