São Paulo, sábado, 14 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LETRAS JURÍDICAS

Consciência social sintetiza o Direito

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

No primeiro capítulo do livro "L'Inteligence de la Complexité", organizado por Jean Louis de Moigne, Edgar Morin (pensador francês) lembra uma frase pedagógica de Rabelais (1494-1553): "Ciência sem consciência não é senão a ruína da alma". A frase tem atualidade, porque hoje se põe a questão de saber se os campos do conhecimento humano estão abertos, sem limite, à pesquisa e à investigação, sejam quais forem as suas consequências morais, ou se o pensamento rabelaisiano é coisa antiga, superada em face da realidade moderna.
A tese de que o conhecimento científico se impõe como necessidade, independentemente de suas conotações morais, pode parecer estranha ao Direito, mas não é. Divido essa preocupação com o leitor. O Direito é ciência social que, na definição do filósofo italiano Giorgio Del Vecchio, consiste na coordenação das relações interpessoais. Coordenação equitativa, com vistas ao equilíbrio entre os que podem e os que não podem. Ou, mais precisamente, entre os que dispõem de meios para se defenderem e os que não têm nem como afirmar suas necessidades mais prementes (o comer, o morar) nem possibilidade de defender a outorga das possibilidades de sua vida digna. Direito aplicado exige consciência social.
Há dois modelos básicos de procurar o Direito oficial: um desses modos é o nosso, com as leis, feitas pelo Parlamento ou pelo Executivo, interpretadas pelo Judiciário. Outro é o dos costumes e dos casos legais, que se vão formando ao longo do tempo, segundo os comportamentos aceitos pela sociedade e fixados pela magistratura. Nenhum dos dois sistemas é absoluto, diferentemente do que acontecia um século antes. O Direito consuetudinário (baseado no costume) predominou na Inglaterra e nos Estados Unidos. Está passando por transformação grande, com leis novas, escritas à moda brasileira, francesa, alemã, italiana. Por outro lado, o "nosso" modo tende a adotar, cada vez mais, resoluções judiciais imponíveis a todos os casos assemelhados. Para tal efeito, chega-se a desconsiderar o que a lei diz porque, escrita para uma certa época, desajustou-se das mudanças radicais na vida em comum, sobretudo a contar da segunda metade do século 20.
A pesquisa e a investigação do que convém levam em consideração os aspectos morais. O Direito processual permite a crítica das alternativas possíveis, pois o devido processo legal é garantia contra o abuso e o arbítrio, que, no Brasil, se expressa na própria Carta Magna. Deve chegar-se à verdade da Justiça oficial por meio do processo, calcado principalmente na garantia de oportunidades iguais para as partes. Felizmente, nas pesquisas e nos estudos dos quais resultaram muitas alterações do Código de Processo Civil, por exemplo, não se verificou a "ruína da alma" de que falou Rabelais, pois preservaram a ampla defesa e o direito do contraditório, seguindo a Constituição, e assim contribuindo para a conquista da paz social, da qual a vida urbana anda tão necessitada.
Em outros ramos -tome-se o exemplo do Código Civil novo-, também predomina esse caminho -tanto no texto que vigorará em janeiro como em muitas sugestões de mudança que vêm sendo feitas para aprimorar o direito material envolvido. O debate amplo e a participação geral se destinam a dar consciência social aos efeitos da pesquisa e da orientação puramente técnicas.


Texto Anterior: Ex-diretor diz que alertou sobre rebelião
Próximo Texto: Trânsito: Concretagem fecha o viaduto Antártica hoje
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.