São Paulo, domingo, 14 de outubro de 2007

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GILBERTO DIMENSTEIN

A tragédia dos professores enlouquecidos

O choque de vítimas é visível quando uma professora agride um garoto que passou a vida sendo agredido

DEPOIS DE PEGAR UM de seus estudantes mais indisciplinados e agressivos pela gola e rasgar sua camisa, Sirley Fernandes da Silva, professora de uma escola estadual na periferia de São Paulo, pediu licença médica e resolveu procurar um psiquiatra -já não sabia lidar com tanto desrespeito em sala de aula. "O aluno era terrível, mas depois fiquei com pena dele. Quando chamamos os pais e percebemos como são ausentes da vida dos filhos, vemos que o garoto também é uma vítima. O aluno fica em casa abandonado e, muitas vezes, vai para a escola só para comer."
Depois de um ano de terapia, Sirley não abandonou o magistério, apenas trocou de série. Passou a dar aulas no ensino médio, onde, segundo ela, havia uma "vantagem": "Os alunos do ensino médio podem ser mais agressivos verbalmente, mas os do fundamental partem para a agressão física".
Difícil saber o que é mais dramático: a professora descontrolada pedindo socorro ao psiquiatra ou a "vantagem" que ela encontrou ao dar aulas para estudantes mais velhos e apenas ser xingada.
O caso de Sirley faz parte de uma tragédia conhecida quase exclusivamente por especialistas: a epidemia de distúrbios mentais dos professores brasileiros, provocados, entre outros motivos, pela violência e pelas condições de trabalho ruins. Diante desse massacre psicológico, um minuto de silêncio seria uma forma apropriada de comemorar, amanhã, o Dia do Professor.

 

O cansaço psicológico de Sirley ajuda a explicar uma informação divulgada pela Folha na sexta-feira sobre o desempenho escolar em uma das regiões mais ricas do país. Segundo testes aplicados pelo governo estadual, 37% dos estudantes que concluem o ensino fundamental são totalmente analfabetos. Nada menos do que 72% das escolas nessa região estão em "estado de atenção", devido ao baixo aprendizado. Entende-se como as crianças se tornam adultos incapazes de compreender um texto simples.
O problema dos salários não é o maior dos males -o maior de todos são as condições de trabalho. Uma pesquisa realizada neste ano pela Apeoesp (sindicato dos professores estaduais) levantou, pela ordem, os seguintes problemas: superlotação em sala (73%), falta de material didático (67%), dificuldade de aprendizagem dos alunos (65%), jornada excessiva (64%), violência nas escolas (62%).
 

De acordo com essa pesquisa, 80% dos professores apresentam o cansaço como um sintoma freqüente, 61% sofrem de nervosismo, 54% padecem com dores de cabeça e 57% têm problemas com a voz. Cerca de 46% deles tiveram diagnóstico confirmado de estresse.
Devemos examinar esse dados com certa atenção porque, primeiro, vêm de um sindicato, que tende a exagerar seus dramas para exigir benefícios à categoria, e, segundo, porque existe uma indústria da licença médica, vista quase como um direito adquirido para compensar tantas adversidades.
Mas quem freqüenta escolas públicas, especialmente na periferia, sabe que, de fato, o professor é massacrado diariamente -assim como seus alunos são massacrados, vítimas de uma série de mazelas que acabam afetando seu aprendizado. O professor é obrigado a lidar com o aluno que não ouve direito porque não sabe limpar direito o ouvido, que sofre de dislexia nem ao menos diagnosticada ou que é vítima da violência ou do descaso doméstico.
 

O massacre é crônico, de tal forma que, dificilmente, se conseguiria atrair talentos para as escolas públicas -especialmente, para quem mais precisaria desses talentos, que são os mais pobres. Não atraindo, cria-se um círculo vicioso da miséria educacional. O que se nota, além de um absenteísmo enorme, com ou sem justificativa, é uma rotatividade incessante de professores e de diretores.
Pense numa das empresas mais sólidas do Brasil e imagine que os funcionários se comportem como se estivessem numa escola pública -estressados, desmotivados, nem punidos por seus erros, nem premiados por seus acertos. E tudo isso apoiado num forte corporativismo. E, em muitos casos, como mostrou a Folha na semana passada, com cargos de direção escolhidos por políticos. Em quanto tempo essa empresa quebraria?
 

Oferecer melhores salários certamente ajudaria, a longo prazo, a atrair talentos. Mas, a curto prazo, nesse massacre a que estão submetidos os professores, duvido que funcione. Faz mais sentido oferecer prêmios a escolas que demonstrem mais esforço e ir, aos poucos, criando exemplos, enquanto se melhoram as condições de trabalho, os currículos e os cursos de formação dos docentes.
Nessa briga, não há mocinhos nem bandidos. É, na verdade, um choque de vítimas, visível quando uma professora, desesperada, agride um garoto que passou a vida sendo agredido.
 

O que dá para dizer, com certeza, é que não se constrói uma nação civilizada com professores enlouquecidos.
 

PS - Preparei para meu site (www.dimenstein.com.br) um dossiê sobre a saúde dos professores e dos alunos. Podem esquecer soluções mágicas para o problema da educação: se não mexermos na questão da saúde tanto de quem dá aula quanto de quem estuda, não vamos muito longe.


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