São Paulo, terça-feira, 14 de novembro de 2000

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ARTIGO
Atacando a indolência

JOSÉ SERRA

Quem diria que a indolência burocrática, um dos defeitos tão sublinhados pelos excelentes relatórios anuais do Banco Mundial sobre o desenvolvimento no mundo, acometeria também o departamento de estudos e pesquisas do próprio banco? Se não for assim, como explicar os equívocos referentes à saúde em nosso país do último trabalho desse departamento, "Atacando a pobreza no Brasil"?
Há cerca de seis meses, criticávamos na Folha um relatório da ONU sobre os gastos públicos em saúde no Brasil. Pois não é que o mesmo estudo, afirmando que esses gastos beneficiam os mais ricos em detrimento dos pobres, reaparece agora no trabalho do Banco Mundial? Textualmente, segundo os técnicos do banco: "Os gastos com a saúde têm sido contraditoriamente endereçados aos menos pobres".
Apesar de novo, o estudo do banco utiliza dados velhos, como velha é também a piadinha neoliberal de um economista que participou do trabalho: "Se todos os recursos usados nas políticas sociais do Brasil fossem jogados de um helicóptero, os pobres teriam mais chances de recebê-los do que da maneira como são aplicados hoje". O comentário jocoso se refere à suposta falta de "focalização" dos gastos sociais, incluindo a saúde, e embute a idéia equivocada de que bastaria redirecionar os gastos na saúde em benefício dos pobres para resolver os problemas da pobreza.
Essa tese em relação à saúde não é inocente, pois procura fundamentar a idéia de que não é preciso destinar mais recursos ao setor -bastaria redirecioná-los, subtraindo assistência médica dos "ricos" para dá-la aos pobres: um Robin Hood sanitário. Mais ainda, de acordo com esse ideário de corte neoliberal, poder-se-ia até cortar em termos absolutos os atuais gastos em saúde, pois a correta "focalização" garantiria a proteção aos carentes!
Ao analisar o relatório da ONU, já havíamos chamado a atenção para a falta de fundamento empírico desse credo e apresentado evidências de que, ao contrário, o gasto público em saúde no Brasil é redistributivo, ou seja, beneficia mais a quem tem menos.
Trata-se de dados recentes e acessíveis a todos aqueles envolvidos na elaboração do atual estudo do Banco Mundial. O mínimo que se esperaria de uma instituição como essa seria a incorporação de tais evidências aos seus trabalhos. Por exemplo, os números da Pnad-98, fonte que, além de ser mais atualizada que a PPV (Pesquisa sobre Padrão de Vida), de 1996, utilizada pelo banco, é bem mais abrangente e metodologicamente melhor.
Essa pesquisa (PPV-1996), aliás, cobriu apenas duas regiões do país (Nordeste e Sudeste), num universo de 6.000 famílias, enquanto a Pnad cobre mais de 100 mil famílias no Brasil inteiro. Ademais, a PPV foi baseada em questionário que deixou de incluir perguntas sobre se as pessoas receberam gratuitamente medicamentos, vacinas ou qualquer outro tipo de ação epidemiológica preventiva. Nela, muitas das pessoas do quintil superior (20% de maiores rendimentos) que disseram ter sido atendidas num "hospital (ou clínica) conveniado" não se referiam necessariamente ao SUS, mas provavelmente a um plano de saúde privado. Tampouco havia algum item no questionário que contemplasse a opção "hospital público" ou "plano de saúde". Essa falha já havia sido notada por dois pesquisadores do Ipea (Sérgio Piola e André Nunes), mas os consultores do Banco Mundial esqueceram de levá-la em conta. Por último, o estudo do banco considerou como gasto público em saúde não mais de 75% das despesas do Ministério da Saúde (exclusive pessoal). Seus autores pensaram somente em hospitais e ambulatórios, deixando de lado, como apontei, por exemplo, vacinas ou distribuição de medicamentos.
Vejamos agora com mais detalhes alguns dos dados da última Pnad quanto aos aspectos redistributivos do nosso sistema público de saúde.

Atendimento
A tabela 1 começa desmentindo a tese do Banco Mundial, pois mostra que cerca de 50% dos atendimentos à saúde no Brasil são feitos pelo SUS (gratuito) e que essa proporção é marcadamente maior entre os quintis mais pobres. Como se sabe, a diminuição acentuada da proporção de atendimento pelo SUS nos estratos de renda mais alta se deve à cobertura pelos planos de saúde, muito concentrada nessas faixas de renda.
Além disso, não há por que estranhar que uma em cada sete pessoas de maior renda seja atendida pelo sistema público. Primeiro, porque o fato de alguém pertencer ao nono, ou mesmo ao décimo decil da distribuição, não significa que seja "rico". Basta lembrar que a renda média do trabalho no nono decil é de R$ 853 mensais. Hemodiálise, por exemplo, custa R$ 1.200 mensais. Deveríamos então permitir que os sortudos integrantes desse decil morressem a fim de seguir as recomendações do banco e de seus consultores, neoliberais caboclos?
Segundo, porque o SUS é constitucionalmente universal. Não compartilhamos da idéia, tão cara aos defensores de versões vulgares da teoria da "focalização", de um sistema especial para os pobres. Como já disse lorde Beveridge "políticas que são exclusivas para os pobres são políticas pobres".

Acesso
Quanto ao acesso ao sistema, a tabela 2 mostra que a prontidão no atendimento feita aos mais pobres, na imensa maioria pelo SUS, é praticamente igual à verificada nos decis mais altos na escala de rendas, onde o atendimento realizado por prestadores privados é bem mais elevado.

Gratuidade
A tabela 3 indica ainda que, em média, 16% dos que necessitaram de atendimento não o fizeram pelo SUS nem estavam cobertos por planos de saúde, ou seja, pagaram pelo atendimento diretamente com dinheiro do próprio bolso.
Entretanto a ocorrência de pagamento entre os mais pobres é muito pequena, e tal pagamento, conforme o esperado, aumenta à medida que crescem os níveis de renda.

Medicamentos
A distribuição gratuita de remédios que, em 1998, na média, estava ainda muito longe do ideal, também apresenta um claro padrão progressivo.
Note-se que, desde 1998, a distribuição gratuita de medicamentos no Brasil pelo menos duplicou, graças à ação do Ministério da Saúde, mediante compras diretas em nível federal ou por meio da implantação do Incentivo à Assistência Farmacêutica Básica, em que os recursos são repassados diretamente a Estados e municípios. Seguramente as Pnads futuras apresentarão resultados ainda melhores ao captar os efeitos dessas ações.

Satisfação com o serviço
É interessante observar (tabela 5) que, entre os usuários do SUS, o percentual da soma das respostas "muito bom" e "bom", além de elevado de modo geral, não difere significativamente entre os estratos de renda.
Como se percebe, bastam alguns poucos dados para mostrar os equívocos contidos no estudo do Banco Mundial. Caso a equipe responsável pense em "requentá-lo" mais uma vez, espero que, além de incorporar informações atualizadas e confiáveis, demonstre um melhor conhecimento do modelo de saúde adotado pelo Brasil, conformado pelo Sistema Único de Saúde, segundo o princípio da universalidade de acesso.


José Serra, 58, economista, é ministro da Saúde e senador licenciado pelo PSDB de São Paulo. Foi deputado federal pelo PMDB-SP (1986-88) e pelo PSDB-SP (1988-94) e ministro do Planejamento (governo FHC).


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