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ARTIGO
Atacando a indolência
JOSÉ SERRA
Quem diria que a indolência
burocrática, um dos defeitos
tão sublinhados pelos excelentes
relatórios anuais do Banco Mundial sobre o desenvolvimento no
mundo, acometeria também o
departamento de estudos e pesquisas do próprio banco? Se não
for assim, como explicar os equívocos referentes à saúde em nosso
país do último trabalho desse departamento, "Atacando a pobreza
no Brasil"?
Há cerca de seis meses, criticávamos na Folha um relatório da
ONU sobre os gastos públicos em
saúde no Brasil. Pois não é que o
mesmo estudo, afirmando que esses gastos beneficiam os mais ricos em detrimento dos pobres,
reaparece agora no trabalho do
Banco Mundial? Textualmente,
segundo os técnicos do banco:
"Os gastos com a saúde têm sido
contraditoriamente endereçados
aos menos pobres".
Apesar de novo, o estudo do
banco utiliza dados velhos, como
velha é também a piadinha neoliberal de um economista que participou do trabalho: "Se todos os
recursos usados nas políticas sociais do Brasil fossem jogados de
um helicóptero, os pobres teriam
mais chances de recebê-los do
que da maneira como são aplicados hoje". O comentário jocoso se
refere à suposta falta de "focalização" dos gastos sociais, incluindo
a saúde, e embute a idéia equivocada de que bastaria redirecionar
os gastos na saúde em benefício
dos pobres para resolver os problemas da pobreza.
Essa tese em relação à saúde não
é inocente, pois procura fundamentar a idéia de que não é preciso destinar mais recursos ao setor
-bastaria redirecioná-los, subtraindo assistência médica dos
"ricos" para dá-la aos pobres: um
Robin Hood sanitário. Mais ainda, de acordo com esse ideário de
corte neoliberal, poder-se-ia até
cortar em termos absolutos os
atuais gastos em saúde, pois a correta "focalização" garantiria a
proteção aos carentes!
Ao analisar o relatório da ONU,
já havíamos chamado a atenção
para a falta de fundamento empírico desse credo e apresentado
evidências de que, ao contrário, o
gasto público em saúde no Brasil é
redistributivo, ou seja, beneficia
mais a quem tem menos.
Trata-se de dados recentes e
acessíveis a todos aqueles envolvidos na elaboração do atual estudo
do Banco Mundial. O mínimo
que se esperaria de uma instituição como essa seria a incorporação de tais evidências aos seus trabalhos. Por exemplo, os números
da Pnad-98, fonte que, além de ser
mais atualizada que a PPV (Pesquisa sobre Padrão de Vida), de
1996, utilizada pelo banco, é bem
mais abrangente e metodologicamente melhor.
Essa pesquisa (PPV-1996), aliás,
cobriu apenas duas regiões do
país (Nordeste e Sudeste), num
universo de 6.000 famílias, enquanto a Pnad cobre mais de 100
mil famílias no Brasil inteiro.
Ademais, a PPV foi baseada em
questionário que deixou de incluir perguntas sobre se as pessoas receberam gratuitamente
medicamentos, vacinas ou qualquer outro tipo de ação epidemiológica preventiva. Nela, muitas
das pessoas do quintil superior
(20% de maiores rendimentos)
que disseram ter sido atendidas
num "hospital (ou clínica) conveniado" não se referiam necessariamente ao SUS, mas provavelmente a um plano de saúde privado. Tampouco havia algum item
no questionário que contemplasse a opção "hospital público" ou
"plano de saúde". Essa falha já havia sido notada por dois pesquisadores do Ipea (Sérgio Piola e André Nunes), mas os consultores
do Banco Mundial esqueceram de
levá-la em conta. Por último, o estudo do banco considerou como
gasto público em saúde não mais
de 75% das despesas do Ministério da Saúde (exclusive pessoal).
Seus autores pensaram somente
em hospitais e ambulatórios, deixando de lado, como apontei, por
exemplo, vacinas ou distribuição
de medicamentos.
Vejamos agora com mais detalhes alguns dos dados da última
Pnad quanto aos aspectos redistributivos do nosso sistema público de saúde.
Atendimento
A tabela 1 começa desmentindo
a tese do Banco Mundial, pois
mostra que cerca de 50% dos
atendimentos à saúde no Brasil
são feitos pelo SUS (gratuito) e
que essa proporção é marcadamente maior entre os quintis mais
pobres. Como se sabe, a diminuição acentuada da proporção de
atendimento pelo SUS nos estratos de renda mais alta se deve à
cobertura pelos planos de saúde,
muito concentrada nessas faixas
de renda.
Além disso, não há por que estranhar que uma em cada sete
pessoas de maior renda seja atendida pelo sistema público. Primeiro, porque o fato de alguém
pertencer ao nono, ou mesmo ao
décimo decil da distribuição, não
significa que seja "rico". Basta
lembrar que a renda média do trabalho no nono decil é de R$ 853
mensais. Hemodiálise, por exemplo, custa R$ 1.200 mensais. Deveríamos então permitir que os sortudos integrantes desse decil
morressem a fim de seguir as recomendações do banco e de seus
consultores, neoliberais caboclos?
Segundo, porque o SUS é constitucionalmente universal. Não
compartilhamos da idéia, tão cara
aos defensores de versões vulgares da teoria da "focalização", de
um sistema especial para os pobres. Como já disse lorde Beveridge "políticas que são exclusivas
para os pobres são políticas pobres".
Acesso
Quanto ao acesso ao sistema, a
tabela 2 mostra que a prontidão
no atendimento feita aos mais pobres, na imensa maioria pelo SUS,
é praticamente igual à verificada
nos decis mais altos na escala de
rendas, onde o atendimento realizado por prestadores privados é
bem mais elevado.
Gratuidade
A tabela 3 indica ainda que, em
média, 16% dos que necessitaram
de atendimento não o fizeram pelo SUS nem estavam cobertos por
planos de saúde, ou seja, pagaram
pelo atendimento diretamente
com dinheiro do próprio bolso.
Entretanto a ocorrência de pagamento entre os mais pobres é
muito pequena, e tal pagamento,
conforme o esperado, aumenta à
medida que crescem os níveis de
renda.
Medicamentos
A distribuição gratuita de remédios que, em 1998, na média, estava ainda muito longe do ideal,
também apresenta um claro padrão progressivo.
Note-se que, desde 1998, a distribuição gratuita de medicamentos no Brasil pelo menos duplicou, graças à ação do Ministério
da Saúde, mediante compras diretas em nível federal ou por meio
da implantação do Incentivo à
Assistência Farmacêutica Básica,
em que os recursos são repassados diretamente a Estados e municípios. Seguramente as Pnads
futuras apresentarão resultados
ainda melhores ao captar os efeitos dessas ações.
Satisfação com o serviço
É interessante observar (tabela
5) que, entre os usuários do SUS,
o percentual da soma das respostas "muito bom" e "bom", além
de elevado de modo geral, não difere significativamente entre os
estratos de renda.
Como se percebe, bastam alguns poucos dados para mostrar
os equívocos contidos no estudo
do Banco Mundial. Caso a equipe
responsável pense em "requentá-lo" mais uma vez, espero que,
além de incorporar informações
atualizadas e confiáveis, demonstre um melhor conhecimento do
modelo de saúde adotado pelo
Brasil, conformado pelo Sistema
Único de Saúde, segundo o princípio da universalidade de acesso.
José Serra, 58, economista, é ministro
da Saúde e senador licenciado pelo
PSDB de São Paulo. Foi deputado federal
pelo PMDB-SP (1986-88) e pelo PSDB-SP
(1988-94) e ministro do Planejamento
(governo FHC).
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