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São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003

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Afro-brasileiros se dizem perseguidos por evangélicos

DA REDAÇÃO

O doutor em direito pela PUC-SP Hédio Silva Jr., autor de uma tese sobre a liberdade de crença no país, aponta um reflexo do preconceito religioso na paisagem urbana. "Você olha para São Paulo e não vê templos das religiões de origem africana. Até 20 anos atrás, os terreiros tinham de se cadastrar na Delegacia de Costumes. É uma arquitetura oculta."
Em Cidade Tiradentes, um distrito de paisagem monótona, formado por conjuntos habitacionais na borda leste da cidade, a mãe-de-santo de candomblé Kika de Bessem se irrita com o carro de som de uma igreja que insiste em passar em frente de sua casa anunciado uma sessão de "descarrego" -ritual para livrar o corpo de más energias. "Para que eu iria a uma igreja evangélica para fazer esse tipo de coisa? Isso eu sei fazer muito melhor."
Igrejas neopentecostais incorporam em suas celebrações elementos de religiões demonizadas por elas. Mas ver a própria tradição cultural ser usada de forma distorcida não é o que incomoda mais. "Se um filho ou neto vai procurar trabalho usando colar de contas, símbolo de nossa religião, não consegue emprego. Se está empregado e se veste de branco na sexta-feira, para louvar Oxalá, também perde o emprego. Nossos rituais, por exemplo, são proibidos nos hospitais."
São atitudes cuja origem é bem antiga. Mas há elementos novos e perturbadores. Líderes de religiões de origem africana, do movimento negro e da própria Igreja Católica afirmam que setores evangélicos difamam e demonizam as religiões afro-brasileiras.
"Dizem que, se houver algum terreiro perto, ele vai trazer o mal. A intolerância religiosa é a face mais crua do racismo brasileiro", afirma Hédio Silva Jr.
Em São Paulo, entidades do movimento negro entregaram ao Ministério Público Federal, na semana passada, pedido de abertura de ação civil pública contra programas religiosos da Rede Record e da Rede Mulher, ambas controladas pela Igreja Universal.
"Não vejo que perseguição é essa", diz o deputado Reginaldo Germano (PFL-BA), da Igreja Universal. "Há uma liberdade de culto. Encontram-se despachos nas ruas, perto das cachoeiras. O padre Marcelo prega na TV."
Segundo Germano, a Universal tem 23 deputados federais e deles nunca partiu nenhuma ação para causar impedimento a qualquer religião. "No simples fato de praticar a fé, uma religião já ofende a outra. A Igreja Católica adora imagens, nós não. Isso nos ofende. Nossa maneira de pregar é contrária ao candomblé. O sacrifício agride a gente. E não há ação de nossa parte contra essas igrejas. Respeito o direito de a pessoa professar a sua fé, mas não preciso respeitar os deuses dela."
Com relação ao argumento de que a TV é uma concessão pública e que não deveria ser utilizada para propagar um discurso intolerante, Germano diz: "Se o candomblé tivesse TV, iria mostrar o culto deles. E nós jamais iríamos nos levantar contra essa atitude."
Hédio Silva afirma que o discurso religioso agressivo começa a produzir efeitos na sociedade -cita, entre outros, casos em que automóveis com colar de contas (guia) pendurado no retrovisor são alvejados por sal grosso e enxofre. "A proporção que isso pode atingir é imprevisível." A preocupação é compartilhada por Roberto Romano, professor titular de ética e filosofia política na Unicamp. "Pode trazer atitudes desastrosas, da qual o chute na santa [Nossa Senhora Aparecida, em um programa da Universal em 96] foi um prenúncio." (ECD)


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