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São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003

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Arquiteto que acompanha há sete décadas as transformações da cidade aponta os erros e os acertos do crescimento urbano

Uma relação espacial com SP

LUIZ CAVERSAN
DA REPORTAGEM LOCAL

A igreja Nossa Senhora do Brasil, localizada na esquina da avenida Brasil com a rua Colômbia, possui esculturas reproduzindo galos nas pontas de suas torres. As peças foram colocadas ali para, além de ostentar um dos símbolos do cristianismo, desempenhar função bem prosaica: disfarçar a presença de duas luzes vermelhas.
As lâmpadas instaladas a menos de trinta metros do solo serviam para balizar a aproximação do aeroporto de Congonhas, isto quando os aviões voavam baixo numa cidade em que os arranha-céus eram raros e as torres da pequena igreja se projetavam isoladas na então pacata região dos Jardins.
O arquiteto Paulo Mendes da Rocha se diverte contando a história, exemplo da transformação por que passou a cidade em que vive há sete décadas. Ainda mais porque foi ele mesmo quem, a mando do arquiteto Bruno Simões Magro, desenhou os galos colocados nos cumes.
Ver surgir a igreja hoje tradicional é apenas uma entre as muitas vivências de Mendes da Rocha ao longo de seu intenso relacionamento com a cidade que adotou desde criança, quando aqui chegou vindo de Vitória (ES).
É por justamente por conta dessa proximidade histórica com a evolução da metrópole que ele mantém uma visão peculiar a respeito de São Paulo. Ao mesmo tempo em que ele a considera uma das melhores cidades do mundo para se viver, como já disse mais de uma vez, mantém uma crítica rigorosa aos rumos dados à expansão urbana, que afasta cada vez mais as pessoas do coração da cidade, redundando no esvaziamento do centro.
Como vive e trabalha na região central -seu escritório fica no prédio do Instituto de Arquitetos do Brasil, na rua Bento Freitas-, sente na pele os reflexos da deterioração a que foi submetida aquela região.
 
Por conta da profissão do pai, engenheiro, Mendes da Rocha desde cedo esteve em contato com as transformações da cidade, assim como com obras realizadas pelo pai fora daqui. Foi nessa época que começou a se entranhar em seu espírito a concepção de espacialidade que sempre teve como parâmetro para observar e interferir na estética urbana.
"Meu pai me levava a todas as obras -da construção do porto de São Sebastião à do aeroporto de Congonhas", diz.
Ele se recorda que uma das opções para abrigar o aeroporto era a área onde hoje se encontra o parque do Ibirapuera. Também lembra que chegou a participar, junto com o pai, de vôos experimentais em trimotores alemães Junkers, dos primeiros a operar em Congonhas.
Por essa época a família de Mendes da Rocha morava em um casarão da avenida Paulista. "Na verdade era uma espécie de pensão, perto da Brigadeiro Luís Antônio." O primeiro colégio que frequentou, o Paes Leme, ficava na esquina da avenida com a rua Augusta, onde hoje é o banco Safra. Dali passou para o colégio São Luiz, na esquina com a Bela Cintra, de onde partiu, sozinho, aos 16 anos, para uma temporada de três anos no Rio de Janeiro.
"Foi a época da formação da minha personalidade. Vinha de um local, Vitória, onde havia uma confluência internacional por causa do porto, passara pelo Rio de Janeiro, capital da República, e vivia na São Paulo das grandes transformações."
Transformações que obviamente ainda não haviam levado a cidade às "loucuras" de hoje, em que as crianças "são isoladas em carros blindados". Retomando os estudos no Colégio São Bento, Mendes da Rocha ia de casa, na rua José Maria Lisboa, à praça Patriarca de bonde. De lá, cruzava toda a rua São Bento a pé, diariamente. "Foi uma passagem de educação e civilização muito interessante, principalmente se comparada com a vida maligna de hoje em dia."
O arquiteto abre um parêntese na sua história para apontar o que considera um exemplo de erro crasso no sentido de afastar a população da cidade: "Quando, nos anos 70, o metrô chegou à praça da República, o colégio Caetano de Campos, escola modelo e que abrigava centenas de jovens promissores, foi simplesmente desativada. Um absurdo total."
De volta à dupla vivência arquitetura/São Paulo, ele recorda que fez vestibular em 1949, não na Escola Politécnica, como era de se esperar. "Acontece que meu pai era o diretor da Poli, que ainda abrigava os cursos de arquitetura -nessa época foi criada a Faculdade de Arquitetura da USP na rua Maranhão. Por que não fui para a Poli? Talvez porque tivesse pudor. Não quis me arriscar a fazer besteiras na casa de meu pai. Acabei indo estudar no Mackenzie, onde tinha de pagar."
Antes mesmo de começar a faculdade, a arquitetura já fazia parte do seu dia-a-dia, uma vez que trabalhava como desenhista para Luiz Maiorana, que projetou diversas casas da família Matarazzo. "O escritório era na rua Marconi. Eu frequentava o Masp, [então] na rua Sete de Abril, e foi nessa época que passei a ter contato com a intelectualidade local."
Uma dos elementos que Mendes da Rocha sempre identificou no processo de transformação da cidade de São Paulo é o desejo de fazer. "Esse desejo, como uma visão erótica que abre a perspectiva da beleza da cidade, levou, por exemplo, a que se construísse Veneza, na Itália, uma cidade fantástica erguida sobre canais e pântanos." No caso de São Paulo, porém, o que ocorre é o que ele chama de "mal da degenerescência", provocado sobretudo pela especulação. "Veja o caso do prédio vertical. Esse tipo de edificação é uma virtude, desejável, uma idéia feliz. Mas não para ser feito do modo que se faz, erguendo-o sobre a matriz de uma casa comum, naquele espaço delimitado e que deveria servir a outro fim. Isso só poderia resultar em desastre."
Um exemplo de edifício vertical bem sucedido: o Conjunto Nacional, que fica entre a avenida Paulista, alameda Santos, rua Augusta e padre João Manoel e onde ele teve escritório nos anos 60: "O projeto de David Liberkind é de um edifício ideal, porque ocupa todo um quarteirão, tem uma excelente área para comércio e entretenimento, galerias que desembocam em todas as ruas, unidades para escritórios e para moradias e garagens subterrâneas que dão em ruas secundárias."
A carreira de Paulo Mendes da Rocha deu um grande salto apenas três anos depois de sua formatura, em 1954. Foi quando ganhou o concurso para a construção do ginásio do Clube Atlético Paulistano. Além da obra em si, que o projetou nacionalmente, ele venceu, com o mesmo trabalho, o prêmio internacional da Bienal de Arquitetura. O que lhe trouxe mais prestígio, mais trabalho e contatos definitivos, como o que estabeleceu com Ciccilo Matarazzo, "um homem gentil e extremamente empreendedor".
No começo dos anos 1960, Paulo Mendes da Rocha foi convidado para ser assistente de Vilanova Artigas, "o principal estruturador da FAU e seu grande professor".
 
Ele lecionou na faculdade até ser compulsoriamente aposentado pelo regime militar em 1969. "Eu tive uma dupla punição, porque fui aposentado e depois proibido de fazer qualquer tipo de trabalho, direto ou indireto, para o governo. Tive que me virar, não sei como, até ser anistiado nos anos 80, quando voltei à FAU."
Aliás, voltou para um local aonde, segundo ele, a faculdade nunca deveria ter ido.
"Foi um erro a construção da Cidade Universitária. Você tinha a Politécnica, tinha a faculdade de medicina, a faculdade de direito e a FAU, todas circundando o centro da cidade, dando vida a ele. Todo arquiteto sabe que a cidade é a escola primordial. Portanto não se pode levar a escola para fora da cidade, como foi feito."
Tampouco que a população seja apartada da cidade por conta de equívocos de naturezas diversas. "O delírio da exploração mercadológica faz com que surja uma extensão absurda da malha urbana. De um lado, as populações mais pobres são levadas para cada vez mais longe. De outro, são os ricos que procuram se esconder longe de tudo. Ou seja, vende-se aquilo que não é a cidade, vende-se o medo, numa concepção fascista da vida."
De qualquer maneira, de acordo com o que pensa Paulo Mendes da Rocha sobre o papel dos formuladores urbanos e da própria existência humana na urbe, pode-se ter esperança de que nem tudo está perdido.
"Deve-se amparar a imprevisibilidade da vida, mas sem conter, delimitar. Porque o homem, quando não vislumbra saída, produz a obra de arte. Em confronto com o limite, ele convoca a condição construtiva para ver se é possível haver o gênero humano eternamente no universo."


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