São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 1998

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INCÊNDIO

Chamas engoliram o glamour

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo


As chamas engoliram o mais belo aeroporto do Brasil, o mais simpático, o mais glamouroso, o mais carregado de significados, o mais visitado pelas asas do afeto e da recordação.
O Santos Dumont, que ardeu ao longo da madrugada de anteontem, preservava em seus pilotis, em seus painéis, em seus mármores, em suas xícaras e bules de café as digitais de um Brasil que vai definitivamente ficando para trás.
O Brasil de Getúlio Vargas, que o inaugurou e batizou, o Brasil da Siderúrgica Nacional, da cultura de Gustavo Capanema, Carlos Drummond e Villa-Lobos. Também o Brasil simbolizado pelo Rio, o país da bossa nova, do Electra, da miss, do amor, do sorriso e da flor.
O que aconteceu na sexta-feira não foi um mero acidente. Foi como se um acúmulo de pequenas negligências, fruto da degradação dos serviços públicos, da degeneração de um ciclo estatista e dos problemas da antiga capital fosse gestado nas sombras para um belo dia atingir seu ápice em labaredas, num espetáculo público destinado a exemplificar a sentença de morte que as novas elites proclamaram contra a velha ordem.
O incêndio do Santos Dumont não deixa de ter esse cruel simbolismo, metáfora ardente da tese de Fernando Henrique Cardoso de que aquele Brasil erguido em torno da figura de Vargas está fadado a virar cinzas.
Mas não é só a memória política que se esvanece com as chamas. Desbotam-se também sabe-se lá quantas histórias pessoais, quantas infâncias, quantos amores, quantos pecados, encontros e desencontros que ali eram revividos a cada pouso e decolagem.
Quantos olhos deixaram-se hipnotizar pelos painéis no hall de desembarque, alegorias do sonho humano de voar, com aquelas figuras fascinantes, aqueles balões, dirigíveis, aeromoças e pilotos? De quantos brasileiros o incêndio roubou um pequeno tesouro de sentimentos e lembranças? Quantos choraram ao saber da notícia?
Aeroporto internacional, porta de entrada, cartão-postal, o Santos Dumont, com a mudança da capital, foi aos poucos tornando-se o ponto carioca de ligação permanente com São Paulo. Que sensação agradável chegar ao Rio em sua pista, de frente para o Pão de Açúcar, o mar tão perto, o Aterro, o porto, o centro ao alcance dos olhos. Que transtorno, agora, descer na ilha do Governador. E que desconforto voltar a frequentá-lo, em instalações improvisadas, e testemunhar a desolação do velho prédio incendiado...
Diz Jorge Henrique Dumont, 71, sobrinho do inventor, que o tio, cheio de crendices, atribuiria a destruição ao dia fatídico -sexta-feira, 13. É muito provável. Da mesma forma que outros tantos, sem perder o humor diante da tragédia, apostam que o culpado é o próprio Pai da Aviação.
O supersticioso Santos Dumont transformou-se para muitos em sinônimo de má sorte. Há quem não pronuncie seu nome (ou corra para bater na madeira ao ouvi-lo) e prefira chamar o aeroporto assim mesmo -"aeroporto".
O fato de que entre os escombros tenha-se preservado intacto o painel que retrata Dumont é para os supersticiosos prova inconteste de que há algo mais entre o céu e a terra do que os aviões de carreira.
Mas mesmo esses concordarão que o desleixo com a segurança, a ausência de água e o atraso na comunicação aos bombeiros foram precioso auxílio terreno à catástrofe. Auxílio que todo o país gostaria de ver esclarecido, mas que corre o risco de ficar incógnito no emaranhado das "apurações". Nada, porém, restituirá o espaço simbólico perdido -nem mesmo a já proclamada reconstrução.



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