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GILBERTO DIMENSTEIN
Um bonde chamado desejo
Expulso das ruas em nome
da modernidade dos automóveis, o bonde, ícone dos tempos
em que os homens andavam de
chapéu e as pessoas ainda nadavam no rio Tietê, insinua uma
volta triunfal à cidade de São
Paulo.
Adquirido de um colecionador,
um bonde, movido a eletricidade,
prepara-se para voltar aos trilhos
ainda este ano, percorrendo cerca
de dois quilômetros de extensão e,
pelo menos, cem anos de história.
Conforme o trajeto escolhido
pela Secretaria Estadual da Cultura, os passageiros deverão sair
da Sala São Paulo, sede da Orquestra Sinfônica Estadual, passar pela futura Faculdade de Música (ex-Deops, hoje em reforma),
seguir pelo parque da Luz e entrar na avenida Tiradentes, na altura do Museu de Arte Sacra. Na
volta, o bonde vai circundar a Pinacoteca do Estado em direção à
estação da Luz, que deverá abrigar um centro de língua portuguesa.
Animado pelo resgate nostálgico combinado com a ampliação
das calçadas, Maurício Faria,
presidente da Emurb (Empresa
Municipal de Urbanismo), órgão
da prefeitura, jogou nos trilhos
uma imagem tão atraente quanto ousada: criar passagens subterrâneas para os automóveis e
construir, na parte de cima, uma
praça semelhante à do Anhangabaú.
Como para sonhar não se paga
imposto, o que se pretende é desenhar uma rede de corredores, entremeados por praças, unindo a
Sala São Paulo à Biblioteca Mário de Andrade, passando pelo
Masp, pela praça do Patriarca, e
pelo novo Centro Cultural Banco
do Brasil.
A rota seria marcada, assim,
por auditórios, cinemas, praças,
cafés, restaurantes, exposições,
concertos, palestras, bibliotecas,
oficinas, ateliês e salas de aula.
Traduzindo: no coração da cidade, pulsaria arte.
Imaginar esse desenho é, por enquanto, apenas um exercício na
prancheta de um arquiteto ou em
algum jogo eletrônico infantil do
tipo SimCity.
Mas o que rabisca aquele desenho -numa visão de curto prazo, exótico e deslocado- é a realidade, reflexo do que ocorre não
só em São Paulo mas em todo o
país, em particular nas regiões
metropolitanas.
Vive-se uma crescente demanda por conhecimento e cultura, os
trilhos do novo bonde da história.
Quem se dispuser a ler, com um
mínimo de isenção, os indicadores sociais divulgados pelo IBGE
verá lado a lado a crônica barbárie da miséria combinada com
inequívocos sinais de progresso
humano.
Um dos mais terríveis reflexos
dessa barbárie foi enfatizado, na
semana passada, pela divulgação
do relatório da ONU, em que se
denuncia a banalização da tortura. Estimuladas pela divulgação
internacional, entidades defensoras de direitos humanos, em São
Paulo, contaram, por exemplo, o
caso do vendedor Wander Cosme
Cavalheiro, que passou a madrugada suspenso num pau-de-arara, com fios elétricos ligados ao
seu pênis e ao seu ânus.
Basta a convivência rotineira
com a tortura, da Febem às delegacias, para que estejamos impedidos de reivindicar a condição
de nação civilizada.
Como mostram os indicadores,
o Brasil ainda vai ser, por muito
tempo, um país célebre por conter
as mais distintas modalidades de
analfabetismo -do funcional, o
das pessoas com menos de quatro
anos de estudo, ao digital, o dos
indivíduos incapazes de conviver
com os códigos da modernidade.
Isso não impede, porém, a veloz
disseminação de ambientes dedicados às artes, o que, em São Paulo, significa novas áreas de convivência, na falta de áreas publicas
decentes.
Três inaugurações já engatilhadas revelam essa velocidade: o
Centro Cultural do Banco do Brasil, o Complexo Cultural Ohtake,
dedicado às artes cênicas e plásticas, e o teatro Abril, que estréia
com a superprodução "Os Miseráveis". Somam-se à efervescência de criação de espaços empreendida, nos últimos anos, pelos bancos Real, Unibanco e Itaú.
O surgimento de grandes casas de
espetáculos, como o Credicard
Hall, e a restauração do teatro
São Pedro comprovam essa tendência.
Mesmo lentamente, está em andamento o Centro Cultural dos
Correios, no vale do Anhangabaú. Também em articulação está o projeto de converter os cinemas da avenida São João, quase
todos abandonados ou falidos,
num corredor de musicais.
São movimentos guiados não
pela alucinação, mas por uma lógica: a de que o novo bonde da
história é conduzido pela era do
conhecimento, ou seja, cada vez
mais as pessoas valem quanto sabem.
Por uma questão de sobrevivência, as cidades com vocação internacional precisam melhorar para
nutrir o capital humano. Investir
em estética e cultura é a estratégia
para atrair talentos e empresas.
Aquele desenho, portanto, é um
delírio para os dias atuais, mas
uma perspectiva digna de debate.
PS - Por falar em estética e urbanismo, Marta Suplicy quer instalar a prefeitura no simbólico
prédio do Banespa, no viaduto do
Chá. Falou com a direção mundial do Santander, dono do edifício cobiçado. Foi-lhe prometida
uma oferta especial. A oferta "especial" é a seguinte: a prefeitura
paga uma dívida de R$ 700 milhões que tem com o Banespa.
Marta investigou e foi informada
de que uma dívida desse tamanho só existe na cabeça dos banqueiros espanhóis; certamente,
eles estão tão interessados na estética paulistana como eu estou
na estética das touradas. Mas a
estupidez é local. Os negociadores
da privatização não ouviram o
que os amantes da cidade e urbanistas pediam: que os dois prédios
símbolos do Banespa fossem preservados. Isso dinamizaria a região histórica, e os edifícios abrigariam o poder político. A imensa
maioria das pessoas que têm influenciado os destinos de São
Paulo não vive na cidade. Se vive,
não gosta. Se gosta, gosta pouco.
Se gosta muito, não gosta a ponto
de ajudá-la. E, se ajuda, ajuda
pouco.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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