São Paulo, domingo, 15 de abril de 2007

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"Ciência" vira argumento de antiabortistas

Popularização da ultra-sonografia em pré-natal e melhor definição das imagens ajudaram a elevar o status "humano" do feto

Invenção das pílulas anticoncepcionais e do dia seguinte também tornaram aborto dispensável em milhões de casos

LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

Há um mês, em uma reunião de mulheres com atuação em movimentos populares de São Paulo, surgiu a pergunta: vocês são favoráveis ou contrárias à flexibilização da legislação a respeito do aborto? "Contra", respondeu a maioria.
"Com tanto método contraceptivo à mão, precisa ser muito folgada para chegar ao ponto de ter de decidir entre fazer um aborto ou não", disse uma. "No caso de a menina não se ter precavido de jeito nenhum, ainda tem o recurso à pílula do dia seguinte, né?", emendou outra. "Sabe, eu acho que não dá para legalizar o relaxo e punir o feto", afirmou uma terceira.
Argumentos como esses passam longe da pregação católica (que condena todos os métodos contraceptivos, à exceção da tabelinha e da abstinência sexual), mas acabam por engrossar o caldo das opiniões contrárias à legalização do aborto.
No domingo passado, a Folha divulgou pesquisa Datafolha mostrando que a maioria dos brasileiros (65% dos entrevistados) são favoráveis a que a legislação sobre aborto continue como está -só permitindo a interrupção da gestação em caso de estupro e risco de morte para a mãe. O índice é o maior desde que a pesquisa começou a ser feita, em 1993.
Soou o alarme nas organizações feministas. A coisa ficou séria porque o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, defendeu a realização de um plebiscito sobre o tema. Se realizado hoje, o plebiscito resultaria na manutenção da lei atual.
Segundo a socióloga Maria Betânia Avila, da organização feminista SOS Corpo, o resultado do Datafolha é expressão do massacre ideológico promovido pela turma antiaborto:
"A novela "Páginas da Vida", que acabou há um mês, fez com que os piores vilões aparecessem defendendo que a mocinha da trama fizesse um aborto. Todos os personagens decentes eram contrários. Foi um panfleto antiaborto na TV recordista de audiência", diz.
Outra hipótese levantada para explicar o aumento da fatia antiaborto da população tem, por paradoxal que pareça, a ver com avanços científicos e com a forma como eles se fixam nos corações e mentes da população. A invenção das pílulas anticoncepcionais e do dia seguinte, por exemplo, deram às mulheres instrumentos para que em boa medida possam controlar o tamanho da prole. Na prática, tornaram dispensável -em milhões de casos- o recurso ao aborto.
Segundo o Instituto Alan Guttmacher, entre 1991 e 1996, caiu de 37 para 27 o número de abortos realizados por grupo de 1000 mulheres brasileiras. No mundo todo, pelos mesmos motivos, despencou a incidência de abortos induzidos.
"Despenca mas não acaba, porque o problema é que nenhum método contraceptivo é 100% eficaz", diz Tania Di Giacomo do Lago, 52, da coordenação de saúde da Mulher da Secretaria da Saúde de São Paulo.

Logotipo
Outro avanço importante da ciência -este mais simbólico- é representado pelos exames de imagem da gestação. Nos anos 1970, quando a maioria dos países europeus e os EUA reformaram suas leis, descriminalizando o aborto, inexistia a ultra-sonografia na rotina dos pré-natais. A melhoria na definição das imagens ajudou a elevar o status "humano" do feto e ainda deu de graça aos antiabortistas uma logomarca.
Por fim, os avanços que já permitem sustentar a vida de bebês prematuros de até 22 semanas de gestação, têm colocado para os partidários da legalização do aborto o desafio de definir até que ponto da gravidez é moral interrompê-la.
Jacira Melo, do Instituto Patrícia Galvão, acha que o movimento de mulheres precisa apresentar suas respostas a essa nova ordem de questões "científicas". Ela lembra, por exemplo, que, em Portugal, que realizou em fevereiro um plebiscito sobre o aborto, a pergunta feita aos eleitores era se concordavam com a despenalização da interrupção da gravidez, com a ressalva de que fosse realizada nas primeiras 10 semanas. E ganhou o "sim".


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