São Paulo, domingo, 15 de abril de 2007

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Dois Córregos quer ser a "capital da poesia"

Cidade do interior paulista, com menos de 25 mil habitantes, tem projeto para incentivar a criação poética dos moradores

Concursos acontecem na igreja ou no refeitório da indústria química, e os poemas selecionados enfeitam fachadas

ROBERTO DE OLIVEIRA
DA REVISTA DA FOLHA

"Casas entre bananeiras/ mulheres entre laranjeiras/pomar amor cantar./Um homem vai devagar./Um cachorro vai devagar./Um burro vai devagar./Devagar... as janelas olham./Eta vida besta, meu Deus."
"Cidadezinha qualquer", o poema acima, se encaixa perfeitamente no retrato falado de Dois Córregos, município paulista de menos de 25 mil habitantes, e de outros tantos do mesmo quilate.
Com a igreja matriz em posição estratégica, avistada dos rincões, as badaladas pautam, sem pressa, a rotina dos moradores. A praça, arborizada e limpa, tem coreto. Ao redor, crianças, jovens, idosos e bichos vêem a vida passar. Dá uma sensação de paz, mas também dá uma preguiça danada.
Dois Córregos, no entanto, guarda uma peculiaridade que poderia surpreender o autor do poema, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Nas escolas, em casa, bares, cadeia e capelas, sempre há alguém cometendo versos -e sem a mínima pretensão de que a obra revele um novo Drummond.
Rima pobre, rima rica, versos alexandrinos, versos de pé quebrado; a universal dor de cotovelo, o patriotismo e a religiosidade. Não importa; essencial, em Dois Córregos, é escrever. E poesia.
O embrião da poetice surgiu em 1990, quando o empresário José Eduardo Mendes Camargo, 57, administrava a usina de açúcar e álcool da família. Diretor da Fiesp, José Eduardo convidou gente como o técnico Telê Santana (1931-2006) e o sertanista e indigenista Orlando Villas Bôas (1914-2002) para falar sobre qualidade de vida a 2.000 funcionários.
"Percebemos, porém, que não adiantaria trabalhar somente a geração atual. Havia uma necessidade de envolver também as futuras", lembra.
No passo seguinte, 13 professores mergulharam num projeto que, durante um ano, discutiu questões existenciais e formas de melhorar a vida na cidade. Daí para a poesia foi um tico, acelerado pela descoberta que o próprio empresário, já em fase madura, fez da poesia.
Em 1995, Mendes Camargo criou a ONG Usina de Sonhos, para estimular a criação poética a partir da formação de professores. Por falta de verba, a iniciativa deu uma esfriada de 1998 até o segundo semestre do ano passado. Em setembro de 2006, a proposta bifurcou no projeto Entre-Versos, voltou a ganhar corpo e foi estendida a outras instituições de Dois Córregos.
Com um custo mensal de R$ 10 mil e apoio de prefeitura, Estado, comerciantes e empresários, a poesia foi, literalmente, para as ruas. Em vez de pichação, os muros de Dois Córregos exibem poemas de todo tipo e autor, de estudantes a donas-de-casa, de Fernando Pessoa a presidiárias.
Concursos pipocam todos os meses, na igreja ou no refeitório da indústria química. Os poemas selecionados enfeitam fachadas de casa, prédio histórico, escola, biblioteca, empresa, ganham páginas do jornal local. Segundo a secretária municipal de Educação, Rosa Laura, a poesia vem contribuindo para os alunos melhorarem em matérias como português e redação e estreitarem suas relações sociais.
De verso em verso, a meta é transformar Dois Córregos na "capital da poesia", sonha Mendes Camargo, que também é poeta, autor de quatro livros que ele mesmo bancou.
Em junho, a cidade realiza o "1º Encontro Internacional de Poesia", com oficinas voltadas para a população, shows de repentistas, violeiros e concurso de declamação de poemas. O evento deve contar com a participação do chileno Raúl Zurita e do mexicano Alfredo Spinosa. Entre os brasileiros, Affonso Sant'Anna e Frederico Barbosa reforçam o elenco.


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