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Dois Córregos quer ser a "capital da poesia"
Cidade do interior paulista, com menos de 25 mil habitantes, tem projeto para incentivar a criação poética dos moradores
Concursos acontecem na igreja ou no refeitório da indústria química, e os poemas selecionados enfeitam fachadas
ROBERTO DE OLIVEIRA
DA REVISTA DA FOLHA
"Casas entre bananeiras/
mulheres entre laranjeiras/pomar amor cantar./Um homem
vai devagar./Um cachorro vai
devagar./Um burro vai devagar./Devagar... as janelas
olham./Eta vida besta, meu
Deus."
"Cidadezinha qualquer", o
poema acima, se encaixa perfeitamente no retrato falado de
Dois Córregos, município paulista de menos de 25 mil habitantes, e de outros tantos do
mesmo quilate.
Com a igreja matriz em posição estratégica, avistada dos
rincões, as badaladas pautam,
sem pressa, a rotina dos moradores. A praça, arborizada e
limpa, tem coreto. Ao redor,
crianças, jovens, idosos e bichos vêem a vida passar. Dá
uma sensação de paz, mas também dá uma preguiça danada.
Dois Córregos, no entanto,
guarda uma peculiaridade que
poderia surpreender o autor do
poema, Carlos Drummond de
Andrade (1902-1987). Nas escolas, em casa, bares, cadeia e
capelas, sempre há alguém cometendo versos -e sem a mínima pretensão de que a obra revele um novo Drummond.
Rima pobre, rima rica, versos
alexandrinos, versos de pé quebrado; a universal dor de cotovelo, o patriotismo e a religiosidade. Não importa; essencial,
em Dois Córregos, é escrever. E
poesia.
O embrião da poetice surgiu
em 1990, quando o empresário
José Eduardo Mendes Camargo, 57, administrava a usina de
açúcar e álcool da família. Diretor da Fiesp, José Eduardo convidou gente como o técnico Telê Santana (1931-2006) e o sertanista e indigenista Orlando
Villas Bôas (1914-2002) para
falar sobre qualidade de vida a
2.000 funcionários.
"Percebemos, porém, que
não adiantaria trabalhar somente a geração atual. Havia
uma necessidade de envolver
também as futuras", lembra.
No passo seguinte, 13 professores mergulharam num projeto que, durante um ano, discutiu questões existenciais e formas de melhorar a vida na cidade. Daí para a poesia foi um tico, acelerado pela descoberta
que o próprio empresário, já
em fase madura, fez da poesia.
Em 1995, Mendes Camargo
criou a ONG Usina de Sonhos,
para estimular a criação poética a partir da formação de professores. Por falta de verba, a
iniciativa deu uma esfriada de
1998 até o segundo semestre do
ano passado. Em setembro de
2006, a proposta bifurcou no
projeto Entre-Versos, voltou a
ganhar corpo e foi estendida a
outras instituições de Dois
Córregos.
Com um custo mensal de R$
10 mil e apoio de prefeitura, Estado, comerciantes e empresários, a poesia foi, literalmente,
para as ruas. Em vez de pichação, os muros de Dois Córregos
exibem poemas de todo tipo e
autor, de estudantes a donas-de-casa, de Fernando Pessoa a
presidiárias.
Concursos pipocam todos os
meses, na igreja ou no refeitório da indústria química. Os
poemas selecionados enfeitam
fachadas de casa, prédio histórico, escola, biblioteca, empresa, ganham páginas do jornal
local. Segundo a secretária municipal de Educação, Rosa Laura, a poesia vem contribuindo
para os alunos melhorarem em
matérias como português e redação e estreitarem suas relações sociais.
De verso em verso, a meta é
transformar Dois Córregos na
"capital da poesia", sonha Mendes Camargo, que também é
poeta, autor de quatro livros
que ele mesmo bancou.
Em junho, a cidade realiza o
"1º Encontro Internacional de
Poesia", com oficinas voltadas
para a população, shows de repentistas, violeiros e concurso
de declamação de poemas. O
evento deve contar com a participação do chileno Raúl Zurita
e do mexicano Alfredo Spinosa.
Entre os brasileiros, Affonso
Sant'Anna e Frederico Barbosa
reforçam o elenco.
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