São Paulo, domingo, 15 de abril de 2007

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GILBERTO DIMENSTEIN

Sangue, suor e cerveja


Difícil prever quantas tragédias poderiam ser evitadas se o país conseguisse diminuir o abuso de álcool

TÉCNICOS EM SAÚDE e segurança pública analisaram, no ano passado, amostras de sangue de 1.073 pessoas assassinadas na cidade de São Paulo: 41% delas indicavam presença de álcool. Esse mesmo teste já tinha sido feito em 2004, apresentando resultado quase idêntico (45%).
Um dos responsáveis pela pesquisa, o sociólogo Túlio Khan estima que o álcool tenha sido ingerido, na mesma proporção, pelos agressores. "É comprovado cientificamente que bebida e crime andam juntos", diz.
Em 2004, foram investigadas, também na cidade de São Paulo, 454 vítimas de acidentes fatais de trânsito. Desse grupo, 194 haviam tomado o equivalente a duas latas de cerveja ou três copos de chope. É apenas um detalhe do derramamento de sangue no asfalto - e este é o debate que importa na proposta do Ministério da Saúde, revelada na semana passada, de restringir a publicidade de cerveja.
 
Cálculos produzidos por uma entidade de pesquisa do governo federal (Ipea) indicam que, anualmente, o custo dos acidentes nas estradas (não se computaram as cidades) é de R$ 22 bilhões.
Isso não é nada perto da pior das estatísticas: 30 mil mortos e cerca de 100 mil feridos, muitos dos quais, a julgar pelas pesquisas, afetados pela bebida.
Difícil prever quantas tragédias poderiam ser evitadas se o país conseguisse diminuir o abuso de álcool. Há algumas pistas.
Desde 1999, houve uma queda de 54,7% no número de homicídios dolosos no Estado de São Paulo, tendência que permanece neste ano. Parte dessa queda se deve à região metropolitana, onde, em alguns municípios e bairros, antecipou-se o horário de fechamento dos bares.
Evidentemente, as causas dos assassinatos são muito mais complexas. Mas é inquestionável que, nesse derramamento de sangue, a glamurização publicitária da bebida, associada ao sucesso, ao charme sexual e até à saúde, faz parte do problema. São mínimos os limites para os anúncios de cerveja, protegidos por um forte lobby empresarial.
 
Países desenvolvidos vêm estabelecendo políticas restritivas para o anúncio de bebidas alcoólicas, inclusive cerveja, preocupados com a saúde da população em geral e dos jovens em particular. Tais restrições ocorrem pela simples e óbvia valorização da vida.
Uma série de estudos demonstra que, no Brasil, os jovens bebem cada vez mais e, ainda por cima, começam mais cedo. É simplesmente risível imaginar que eles teriam mais cautela apenas ouvindo aquela rápida frase de alerta depois do sensualíssimo anúncio com mulheres estupendas.
É uma covardia: de um lado, os milhões gastos para relacionar sensualidade, beleza e juventude à bebida e, de outro, os chatos, apresentados como moralistas, com suas estatísticas. Não é uma questão de moralismo. É bélica.
 
Levantamento de opinião divulgado na semana passada mostrou, mais uma vez, que a violência se transformou na maior preocupação dos brasileiros, superando o desemprego. Vemos o Rio, impotente, pedindo a ajuda das Forças Armadas. Os homicídios se transformaram, em regiões metropolitanas, na principal causa de morte entre os jovens. Há uma imensa parcela de jovens que não estudam nem trabalham.
Vivem em bairros cujos exemplos de sucesso são os marginais. Dos 50 milhões de brasileiros entre 15 e 29 anos, cerca de 15 milhões estão nas regiões metropolitanas; entre os mais pobres, a taxa de desemprego chega aos 70%.
Nesse ambiente de desagregação, não é exatamente saudável passarmos a mensagem de que o álcool é um caminho para o sucesso. Essa é mais uma entre tantas irresponsabilidades educacionais brasileiras- algumas se traduzem em notas de matemática ou português, outras em sangue.
 
PS- Nós, jornalistas, sempre gostamos de apontar o dedo para os governantes. Nesse caso da bebida alcoólica vamos ter de avaliar até que ponto os veículos de comunicação, beneficiários dos anúncios, deveriam tomar a dianteira (a exemplo do que muitos fizeram em relação ao fumo) e defender a imposição de limites à publicidade de cerveja. Somos parte do problema: os empresários fazem pressão e o governo cede, mas somos nós que divulgamos o anúncio.

gdimen@uol.com.br


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