São Paulo, quarta-feira, 15 de maio de 2002

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INFÂNCIA

Juíza de Santos determina o afastamento de menores soropositivos de outros não portadores do vírus da Aids

Justiça separa criança com HIV de irmão

Flávio Florido/Folha Imagem
Crianças da Casa Caio, abrigo de Santos que cuida de soropositivos; quatro menores que não eram portadores do HIV foram transferidos


AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

Duas decisões da Vara da Infância e da Juventude de Santos, que transferem oito crianças de um abrigo a outro, provocaram pânico entre elas, a separação de irmãos e a revolta dos funcionários.
Em um dos casos, cinco irmãos foram separados. No outro, as crianças foram levadas na mesma tarde, duas horas depois da chegada do oficial de Justiça.
A transferência, separando irmãos e sem tempo para que as crianças sejam preparadas, contraria as recomendações do Estatuto da Criança e do Adolescente.
"Elas foram arrancadas daqui", diz Priscila Calazans, coordenadora da Casa Caio, um abrigo que cuida de crianças com HIV. A decisão da Justiça, anunciada no dia 2 de maio, determinava a transferência de quatro crianças que não eram soropositivas para outra instituição, a Casa da Criança, também de Santos.
Segundo Priscila, o ofício dava 24 horas para a saída das crianças, mas duas horas depois todas foram levadas por conselheiros tutelares. "Foi a cena mais triste e fria que já vi nesta casa", diz.
No mesmo dia 2, a Justiça também determinou a retirada do abrigo Casa Vó Benedita de quatro crianças portadoras do HIV. Todas foram para a Casa Caio.
Na transferência, a menina E., 5, soropositiva, foi separada do irmão W., 4, e da irmã S., 6. Também foi levado o bebê A., de sete meses, que ficou separado do irmão M., de quatro anos. Na mesma tarde, foram levadas as irmãs B., 2, e T., de oito meses.
"Quando chegou a hora, vestimos as crianças, respiramos fundo e engolimos nossa revolta", conta a assistente social Jane Joice Gimenes, três filhos. "B., de dois anos, agarrou no pescoço da funcionária e gritou tanto que a funcionária teve de ir junto."
Maria Teresa Zogaib, três filhos, psicóloga da Casa Vó Benedita, diz que a separação encheu as crianças de medo. "Elas já chegam aqui com muitas perdas. Vamos ter de reiniciar o trabalho. Na ludoterapia (tratamento com brinquedos e jogos), elas mostram o bonequinho do irmão indo embora e os outros chorando."
As sete crianças envolvidas na transferência da Casa Vó Benedita -as quatro que foram embora e os três irmãos que ficaram- são todas de pais doentes de Aids, impossibilitados de oferecer cuidados ou que as abandonaram.
Na Casa Caio, as quatro crianças levadas para a Casa da Criança estão em processo de adoção, segundo a direção do abrigo. São as meninas A.P. e B., de três anos, e os meninos L.A. e R., de dois. Todos são filhos de pais com Aids e chegaram ao local quando ainda tinham poucos meses.

Outro lado
Elizabeth Lopes de Freitas, um filho, juíza da Vara da Infância e da Juventude de Santos que tomou as decisões, não recebeu a Folha informando que não tinha espaço na agenda de ontem.
A promotora Paula Trindade da Fonseca, mãe de um filho, disse que as transferências são feitas "priorizando a saúde das crianças". "As remoções são realizadas sempre que há excesso em um abrigo e falta em outro. O critério é o bem-estar do menor." Ela afirma que a Vó Benedita "não tem estrutura para garantir a saúde de crianças soropositivas, especialmente no inverno."
Quanto à separação dos irmãos, Paula diz que valeu "o critério de saúde para a criança". "Elas corriam risco maior de adoecer se ficassem na casa."
Segundo a promotora, as "remoções são comuns e nunca houve resistência". Ela atribui o que define como "escarcéu que os abrigos vêm fazendo" a uma série de irregularidades supostamente encobertas pelas casas.
Paula Trindade reconhece que "a transferência poderia ter sido menos dolorosa".
Assim que recebeu o ofício para a transferência, a Casa Vó Benedita recorreu ao Tribunal de Justiça contra a decisão da juíza pedindo a suspensão da sentença. O TJ entendeu que não existe "dano irreparável" na manifestação da juíza e não concedeu a liminar.
"Vamos aguardar o julgamento do recurso, o que pode demorar dois meses", diz Magda Neves, advogada que está cuidando do caso em nome do casa.
Por trás dos episódios de transferência estaria a qualidade das casas de abrigo. A Promotoria alega que nem todas têm infra-estrutura adequada.
A direção da Casa Vó Benedita contesta. "Nossas crianças não ficariam aqui se corressem algum risco", diz a assistente social Jane Gimenes, que trabalha também no Programa Municipal de DST-Aids de Praia Grande. "Todas elas são acompanhadas no Núcleo Integrado da Criança, serviço especializado da rede municipal."
Jane diz que a decisão da Justiça "rotula" e divide as crianças entre as que têm HIV e aquelas que não têm. "Estamos voltando ao início dos anos 90, quando a menina Sheila Cortopassi teve sua matrícula barrada numa escola por ser portadora do HIV."
"A juíza agiu como se estivesse trocando o mobiliário", disse Beto Volpe, presidente do Fórum de ONGs-Aids da Baixada Santista.
O Fórum de ONGs-Aids do Estado de São Paulo, presidido por Eduardo Barbosa, organiza uma manifestação de protesto às 11h de amanhã, em Santos, na praça da Independência, no Gonzaga.



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