São Paulo, segunda-feira, 15 de maio de 2006

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GUERRA URBANA

O medo

LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

A noite e a madrugada de sábado para domingo foram de alerta máximo, medo e uma tensão infernal nas delegacias, postos e bases policiais de São Paulo. Ao ponto de ter sido quase um alívio quando, às 19h40 do sábado, duas motocicletas entraram na avenida Silvio Ribeiro Aragão, no Campo Limpo, e os caronas de repente sacaram as pistolas calibre .40 e 9 mm e dispararam 40 tiros contra a base comunitária da GCM (Guarda Civil Metropolitana), atingindo a mão direita do soldado Valdemar Lopes Ferreira, 50: "Um raio não cai duas vezes no mesmo local", disse um soldado. Caiu -às 6h, em uma nova rajada de balas, desta vez sem vítimas.
"O Valdemar corre o risco de perder os movimentos de dois dedos, mas é melhor isso do que morrer. Só o que eu espero é que chegue logo 6 horas, quando vamos embora", afirmou um soldado, olhos arregalados, abrigado atrás do vidro à prova de balas da base. Esses guardas não queriam combate. Passivos, nem os revólveres calibres 38 eles tiraram das cartucheiras. "Não dá tempo de revidar, é um ataque rápido demais", disse um agente.
O insufilme preto fazia de cada carro uma ameaça e um suspense. Todos os 14 olhos dos agentes que passaram a noite na base escaneavam cada máquina que passava, movimentos coordenados. "A gente era caçador, agora é presa fácil", afirma o guarda.
Na porta do 47º Distrito Policial, o do Capão Redondo, área conhecida pelos altos índices de violência, o clima era de guerra. Rostos cobertos por balaclavas, pistolas nas mãos e uma calibre 12 (arma de matar elefante) para qualquer eventualidade, os 16 agentes não esperavam os ataques.
A estrada de Itapecerica, onde fica a delegacia, teve as pistas estreitadas por obstáculos. Vestidos com coletes à prova de balas, os policiais paravam -com gritos e armas apontadas- as motos que se aproximavam.

Surpresas
Atrás do muro que cerca a delegacia, o titular José Ribamar Raposo, 45, levantou o gorro para falar com a reportagem. "Em 2003, pegaram a gente de surpresa. Agora isso não vai acontecer." De madrugada, no entanto, apesar de todos os cuidados, quatro homens a bordo de um Santana metralharam o DP. Ninguém se feriu, porém 11 carros ficaram esburacados de tiros.
Enquanto os policiais esperavam pelo pior na porta da delegacia, lá dentro, como se nada estivesse acontecendo, três boletins de ocorrência eram lavrados: um por roubo a coletivo, outro por roubo de veículo e até um por perda de documentos.
"Medo? Por que medo? Esses caras do PCC não estão errando o alvo, não. Com eles não tem essa de bala perdida. Pode ver, é só polícia que eles estão "pegando'", explicou um auxiliar de escritório que comprava flores e um quadro escrito "Te Amo, Mamãe", às 3h40 do domingo, em uma banca bem ao lado da base comunitária da PM no Jardim Ranieri, uma das subdivisões do Jardim Ângela, o mesmo que no fim dos anos 90 aparecia no topo da estatística de homicídios no país. Vizinho à base, acontecia um baile na frente da panificadora A Francesinha, que funciona 24 horas por dia.
A periferia da cidade não tem medo da guerra do PCC. Se os três policiais (dois homens e uma mulher) presentes na base comunitária de Guarapiranga estavam fincados em pé em seus postos, dois "três oitão" e uma "doze" em alerta, a casa de espetáculos Guarapirão, vizinha, bombava com 800 foliões chacoalhando com a banda Fettynia, Carlos e Marcel, além das Mocréias e sua trupe.
No meio da madrugada, os jovens desfilavam a bebedeira diante da aflição solitária dos PMs. A "doze", pesadona com seus 4,5 quilos, agora ia das mãos de um soldado para a do outro a cada meia hora. "Não dá para um só carregar esse bichão." Dois garotos "folgados", conforme definiria um PM, chegaram a acender um cigarro de maconha bem na frente da base.
Até atender a um pedido de socorro ficou difícil. Os soldados da Guarapiranga já estavam informados de que seus colegas do vizinho Jardim Herculano tinham sido emboscados ao atender a uma ocorrência de agressão entre familiares. "Fomos em cinco viaturas, com 11 homens. Entramos numa viela e eles começaram a atirar. A gente revidou e eles correram para a favela. Graças a Deus ninguém foi atingido", explicou o sargento Rogério Luís Bartholomeu, 28, PM há 10 anos.

União
As rivalidades entre as corporações ficaram pequenas diante do desafio colocado pelo PCC. "Estamos mais unidos do que nunca. Viramos um corpo só. Agora, tudo depende do comandante, da Justiça e do Ministério Público", diz um policial civil. "Chamou, vai todo mundo."
No velório dos policiais civis atingidos pela violência do PCC (investigador José Antônio Prada Martinez, agente policial Paulo José da Silva, investigador Tamer Ramos Orlando), ontem, na Academia da Polícia Civil, ao lado do campus da Universidade de São Paulo, a revolta dos policiais militares e civis aparecia discretamente, proibidos que estavam os homens de dar entrevistas.
Com a condição de não ser identificados, eles desabafavam:
"Infelizmente, a gente tem uma lei para respeitar, eles [os membros do PCC] não têm nenhuma. Eles invadem sem mandado, portam as armas que querem. A gente tem de se contentar com as porcarias obsoletas que o Estado fornece e autoriza", afirmou um policial militar armado apenas com um "três oitão".
"Armamento? Veja, a gente que é bem equipada [refere-se aos policiais da Delegacia de Narcóticos] tem metralhadora, essa Taurus .40. Eles têm fuzil, dão tiro de rajada com um AR-15 ou um AK-47 [armas de guerra com alta potência perfurante e precisão], têm lança-granada. A gente tinha de ter fuzil também. A gente tinha de estar em vantagem. A gente não pode perder; a gente não pode empatar; a gente tem de ganhar de goleada. Senão é o caos."

Terrorismo
"Antigamente, existia uma ética. Família de policial era coisa sagrada até para o bandido. Acabou a ética e virou terrorismo."
"O policial brasileiro tem garra. Pede para um americano entrar em uma favela. Ele não entra. Quer ir com 50 junto. Este colete à prova de balas, por exemplo. Custa R$ 4.000 e fui eu que comprei. É israelense. Agüenta tiro frontal de fuzil. Os comuns, que a polícia recebe, só seguram tiro de armas de mão. Não dá para combater."
"Faltam o Judiciário e o Ministério Público. Não se consegue escuta telefônica, mandado de busca e apreensão. A segurança depende também da Justiça e do Ministério Público."
"Não estamos respondendo. Agora seria hora de ter mandados de prisão, de busca e apreensão de todos os suspeitos. Isso seria uma resposta. E não ficarmos aqui parados, esperando o próximo ataque."
Com os olhos marejados de lágrimas, policiais experientes -que trabalharam ou trabalham em áreas "quentes" da capital paulista- lastimavam: "É muito triste ver o velório de um companheiro. Olhar o caixão, o cara ali, as flores, as homenagens dos companheiros. E a família na penúria, o salário miserável", afirmou um durão, que já fez curso na lendária equipe da Swat de Miami.
As lágrimas escorreram forte quando ele viu a viúva despojando-se do cobertorzinho pequeno e fino, que a protegia do frio de 12C da noite paulistana, para abrigar a filha de 12 anos que acabava de chegar à morgue na Academia de Polícia. "E agora, como elas vão ficar? É triste demais."


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