São Paulo, quinta-feira, 15 de junho de 2000


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PASQUALE CIPRO NETO

"O modo com que a polícia agiu..."

Bem que Chico Buarque disse, em 72, que "Deus é um cara gozador, adora brincadeira" etc. Modificada pela censura para "nasci batuqueiro", a estrofe original dessa canção terminava com "nasci brasileiro". Ao cantar essa música em Salvador, num memorável encontro com Chico, de que se produziu o antológico disco "Chico e Caetano", Caetano Veloso simplesmente silenciou depois de "nasci". Na mesma letra, Chico diz que "Deus me deu perna comprida (...) pra correr atrás de bola e fugir da polícia".
Também é de Chico, sob os pseudônimos de Leonel Paiva e Julinho da Adelaide, a memorável "Acorda Amor" ("Chame o ladrão! Chame o ladrão!").
Perdoe-me, caro leitor, se toco em assunto que aparentemente não diz respeito à coluna, mas, como o que vou comentar foi tirado de uma das tantas matérias que vi a respeito do assassinato de minha colega Geísa Firmo Gonçalves, no Rio de Janeiro, não resisti à tentação de dizer que, diferentemente do que muitos pensam, é a vida que imita a arte, não é a arte que imita a vida.
Como dizia Chico, em outra antológica canção ("Feijoada Completa"), "Ponha os pratos no chão, que o chão está posto". O chão brasileiro, a miséria brasileira, a pequenez d"alma brasileira.
Vamos tratar da vida, que, no nosso caso, significa tratar da língua. Que tal a expressão "O modo com que a polícia agiu", ouvida em uma das tantas matérias sobre o sequestro da última segunda-feira? Sabemos que no padrão culto da língua é desejável o domínio do emprego da preposição com o pronome relativo. Não se assuste com a terminologia. São casos como "Os fatos a que me refiro", "Os países em que estive", "A escola por que optei", "As teses de que duvido" etc.
O assunto é frequente em concursos públicos e em vestibulares de ponta. Diferentemente do que ocorre no padrão culto, na língua do dia-a-dia é comum a omissão pura e simples da preposição nesses casos. Frases como "A rua que eu moro", "A comida que eu mais gosto", "A escola que eu optei" exemplificam a questão.
"Morar" rege a preposição "em" ("A rua em que moro"); "gostar" rege "de" ("A comida de que mais gosto"); "optar" rege "por" ("A escola por que optei").
A construção "O modo com que a polícia agiu" é no mínimo intrigante. Dizemos tranquilamente que alguém age com rigor, com rispidez, com calma, com energia. Nada nos impede, pois, de dizer "O rigor com que ele age", "A rispidez com que ele age", "A calma com que ele age" e "A energia com que ele age".
O problema é que, quando usamos a própria palavra "modo", não costumamos dizer que alguém age com determinado modo, mas de determinado modo, o que talvez justifique a estranheza diante da construção "o modo com que ele age".
O que fazer? Que termo se usa quando se pergunta de que modo alguém age? O termo é "como" ("Como agiu a polícia?"; "Como ele age nessas situações?").
Alguns autores registram a ocorrência na língua culta do "como" como elemento relacional que estabelece a idéia de modo. Parece, pois, que são indiscutíveis construções como "O modo como a polícia agiu", "O modo como ele bate na bola", "O modo como ele me recebeu" etc. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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