São Paulo, segunda-feira, 15 de julho de 2002

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MOACYR SCLIAR

Metamorfose

 
Experimento mostra que pessoas confiam mais em quem se parece com elas. As pessoas realmente gostam de se enxergar nas outras. Um novo estudo revela que indivíduos tendem a confiar em quem tem o rosto mais parecido com o próprio. Ciência, 8.jul.2002

Na empresa todos temiam o chefe. Era um homem autoritário, brutal mesmo, que não usava de meias palavras quando xingava seus subordinados: "Você não passa de um traste" era uma de suas expressões preferidas.
Como os outros, Marcelo morria de medo do homem. Recém-casado e com um filho pequeno, precisava desesperadamente do emprego e faria qualquer coisa para mantê-lo, para agradar o chefe. Mas, e aí estava a questão, que coisa? Ele não sabia. Até o dia em que leu no jornal uma notícia falando da confiança que as pessoas depositam naqueles que com elas se parecem. E isso lhe deu uma idéia.
Um pouco parecido com o chefe ele já era. Os dois tinham o rosto redondo, os dois tinham olhos castanhos, os dois tinham orelhas um pouco grandes. Com algumas modificações, ele poderia ficar igual ao homem. De imediato começou a trabalhar nisso. Em primeiro lugar, passou a usar ternos escuros, como o do chefe. Mudou o penteado; ele tinha uma vasta cabeleira, o chefe usava um corte severo. De posse de uma foto deste foi a um conhecido cabeleireiro, pediu um corte semelhante a de seu modelo. O cabeleireiro cobrou caro, mas o penteado ficou perfeito. Por fim, teve de recorrer até a uma pequena cirurgia plástica, para remover um sinal do queixo. Pelo qual, aliás, sempre tivera certo carinho. Mas com o futuro não se brinca.
As transformações não pararam aí. Passou a imitar o chefe em tudo: no jeito de andar, na maneira de falar, nos cacoetes até. E a verdade é que deu resultado. O homem nunca comentou nada, mas começou a tratar Marcelo muito melhor. Promoveu-o, deu-lhe um aumento de salário. Um dia chamou-o ao escritório. Marcelo foi -não sem preocupação. Teria o homem, por fim, se dado conta do que estava acontecendo? Seria aquele o momento da verdade, o momento em que seria despedido por causa do truque?
Não. O chefe mandou que ele sentasse. Ficou em silêncio um instante, depois abriu a gaveta, tirou de lá uma foto, estendeu-a a Marcelo. Que, ao olhá-la, sentiu um baque no coração: ele era idêntico ao rapaz que ali aparecia, absolutamente idêntico.
-Meu filho, disse o chefe.
Surpreso, Marcelo viu que ele tinha lágrimas nos olhos. O homem continuou:
-Ele faleceu. De um acidente. Era meu único filho e eu pretendia passar-lhe o comando da empresa. Agora, você ficará no lugar dele.
Abraçou Marcelo efusivamente: a partir daquele momento, ele seria sócio, não mais empregado.
Marcelo correu para casa. Estava ansioso para contar à mulher o que tinha acontecido. Mas, quando chegou, reinava a maior confusão: a empregada tinha ido embora, a comida não estava pronta, o bebê chorava e a mulher estava em prantos.
-Você não passa de um traste, disse Marcelo, irritado. E aí se deu conta: a transformação estava, enfim, completa.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


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