São Paulo, quarta-feira, 15 de setembro de 2004

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FÁBULA URBANA

Obra do Passa Rápido faz usuários de ônibus ironizar martírio enfrentado por motoristas

"A tartaruga está vencendo a lebre"

LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

"Aí, otário, fica aí no seu carrão que eu, no meu bumbão, vou chegar uma hora antes pro abraço da patroa." A zombaria lançada pelo office-boy Odair Gomes Carneiro, 23, contra o mar de carros que rastejavam na Rebouças às 17h15, no sentido centro-bairro, traduz o sentimento de grande parte dos usuários de ônibus que trafegavam na mesma hora pela avenida.
"Pela primeira vez, o transporte público está tendo tratamento preferencial em relação aos carros", disse a religiosa Carmelice Zottis, 44, comemorando o fato de que em meia hora vencera a distância do centro até sua casa, no Jardim Bonfiglioli. Antes, ela não fazia o percurso em menos de uma hora e quinze minutos.
A avaliação é repetida pelo mecânico Afonso Pelegrino, 42. Entusiasmado com a novidade, Pelegrino prevê: "O trânsito vai melhorar porque quem só andava de carro vai perceber as vantagens do transporte coletivo e deixar o carro em casa".
No refeitório do prédio do Unibanco que fica na avenida Eusébio Matoso, foi essa a conversa que a publicitária Viviane Machado, 26, escutou durante o almoço. "Um monte de gente falou em vir trabalhar de ônibus. É que teve alguns colegas que aproveitaram o rodízio para testar o novo corredor de ônibus. Ficaram tão satisfeitos que prometem vir trabalhar sem carro."
A reportagem da Folha fez o teste: de ônibus, o trajeto que separa o Hospital das Clínicas do Shopping Eldorado (3.370 metros) foi percorrido em cinco minutos cravados, entre as 16h45 e as 16h50. Um carro que saiu no mesmo horário só chegou ao shopping às 17h15.
"A tartaruga está vencendo a lebre", comentou a professora de português Regina Soares da Silva, ao ouvir a cronometragem da corrida do ônibus contra o carro. Referia-se à fábula do francês Jean de la Fontaine (1621-1695), que conta como a persistência da tartaruga venceu a arrogância do coelho numa competição de velocidade.
Mas a bronca dos motoristas não é menos combativa. Na esquina da Pedroso de Moraes com a Rebouças, a reportagem da Folha pediu carona a Sergio Alves Coelho, 36, mecânico e motorista do Fusca verde, placa DAL 3852. Objetivo: checar o trânsito no túnel que passa sob a avenida Faria Lima, às 18h15. Estava ótimo -em três minutos, emergia-se do outro lado da obra. Mas, para Coelho, a coisa estava péssima: "Foi sorte. Isso aqui [a cidade] está uma confusão e não vai melhorar. É congestionamento o tempo todo, uma palhaçada. Pega o túnel de volta ao centro e você vai ver."
A reportagem foi. Às 18h30, num táxi, tentava transpor os quase 1.163 metros do túnel no sentido contrário. Coelho tinha razão. Congestionado até a paralisia, o túnel ainda tinha as turbinas de ventilação inertes. Resultado: calor de 30C dentro do buraco (contra os 27C no exterior) e tempo de viagem igual a 40 minutos. Enquanto isso, os ônibus, proibidos de andar dentro do túnel em que ninguém anda, deslocavam-se lá em cima, sem saber do sofrimento da turma que suava dentro dos carros.


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