São Paulo, quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PASQUALE CIPRO NETO

"A aeronave já encontra-se em solo"


Quando a criança escreve "Me convidaram para...", não é hora de dizer absolutamente nada sobre a colocação pronominal

QUEM VIAJA DE AVIÃO certamente já ouviu nas salas de embarque uma mensagem com a qual se informa que "a aeronave que realizará o voo X já encontra-se em solo". É provável também que já tenha ouvido, seja numa sala de embarque, seja num avião, algo como "voo três cinco uno dois".
Pois bem. Vamos por partes. Comecemos pelo "já encontra-se". O caro leitor conhece algum brasileiro que, no dia a dia, num bate-papo, diga algo como "Ele já avisou-me" ou "Ela já arrependeu-se"? É pouco provável, não? E por que será que, em situações formais (como a de um aviso público), seja na fala, seja na escrita, os brasileiros tendem a optar por coisas como "A chave não encontra-se em poder do cobrador" (como se lê em ônibus urbanos) ou como a do aviso dado nas salas de embarque?
Como diz Barbara Gancia, sou capaz de apostar um picolé de limão que a coisa vem de um dos tantos desastres perpetrados pela escola. Para ir direto ao ponto: um belo dia, a criança escreve uma redação em que há um período que começa com algo como "Me convidaram para...", em que ocorre um "crime", isto é, o emprego de pronome oblíquo átono (o "me", no caso) no início de um período.
O tal "crime" consiste em violar uma "regra" de colocação pronominal: não se inicia período com pronome oblíquo átono (me, te, se, lhe, lhes, o, a, os, as, nos etc.). Essa "regra" resulta da observação do que é comum na escrita formal, em que de fato não são frequentes formas como "Se verifica isso em países que..." (a forma que ocorre é "Verifica-se isso em países que...").
Em Portugal, esse procedimento também é comum na língua oral. Um portuguesinho de tenra idade diz "Convidaram-me para uma festa". E diz isso por uma razão muito simples: é o que ele ouve em casa, na rua, na escola etc. Na oralidade do nosso português, há muito tempo não se diz isso. O que se usa efetivamente é, por exemplo, o que se ouve na comovente "Maninha", de Chico Buarque: "Se lembra da fogueira / Se lembra dos balões / Se lembra dos luares dos sertões".
Quando a criança escreve "Me convidaram para uma festa", não é hora de dizer absolutamente nada a respeito da colocação dos pronomes oblíquos átonos, o que dirá de "ensinar" que "está errado porque não se começa com pronome...".
O que se consegue com essa "correção" é a criação de um trauma com a próclise (oblíquo átono posto antes do verbo) e a consequente artificialização da colocação dos oblíquos átonos, de que são bons exemplos a frase dos aeroportos e a dos ônibus. Proclítico na informalidade, o brasileiro acaba tornando-se (artificialmente) enclítico na formalidade, o que o leva a construções que não lembram nenhum dos registros da nossa língua.
Melhor mesmo é deixar que o estudante deduza por si só o que é comum nos diversos registros linguísticos. Aí ele verá que muito do que se usa na fala também se vê na escrita formal. E é esse o caso de construções com os advérbios "já" e "não", com os quais naturalmente se opta pela próclise (pronome antes do verbo): "Ela já se arrependeu"; "Ele já me avisou"; "A chave não se encontra em poder..."; "A aeronave já se encontra..." etc.
O espaço acabou, por isso vou deixar para você (por ora) a reflexão sobre a construção "em solo" e o uso público de "uno" (do "avionês" ou "aeronautiquês"). Volto ao tema assim que possível. É isso.

inculta@uol.com.br


Texto Anterior: Não há melhorias que justifiquem aumento, dizem contribuintes
Próximo Texto: Trânsito: Interlagos terá esquema especial de trânsito para GP de Fórmula 1
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.