São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DANUZA LEÃO

Num trem

A memória é uma coisa curiosa; de repente você se lembra de um fato acontecido há 30 anos e que aparentemente não teve a menor importância em sua vida. Só que teve.
Foi assim: ela era jovem e bem casada e foi à Europa com o marido. Resolveram conhecer uma cidadezinha no interior da Checoslováquia, e na hora de voltar chegaram cedo à estação, para pegar o trem. Ainda faltavam uns 20 minutos para o trem sair, e ela botou a cara no vidro da janela para olhar. Não havia nada para ver, a não ser um outro trem parado com pessoas também esperando, como ela. Na janela bem em frente, a dois metros de distância, a cara de um homem rude e bonito, daqueles que ela nunca teve chance de conhecer. Ele olhou, ela olhou; ela desviou os olhos mas olhou de novo, e nessa brincadeira levaram uns bons minutos. Como os dois trens estavam posicionados em direções opostas (e o marido lia um livro), ela se sentiu com uma certa liberdade, e quando ele sorriu ela também sorriu -escondendo o rosto com os cabelos para o marido não ver. Os trens partiram e cada um seguiu o seu destino.
Não que ela tivesse pensado nele muitas vezes, mas às vezes lembrava. Lembrava e pensava no quanto foi intenso aquele momento.
O tempo passou; vieram os filhos, os netos, e um belo domingo, no sítio, ela está na varanda depois do almoço rodeada pela família, e lembra. Lembra mas não entende: por que pensar nisso de repente, a troco de nada? Ah, se soubesse.
Tenta entender: para ela, esse episódio foi quase um pecado. Se estivessem no mesmo trem, ela não teria nem percebido que ele estava olhando. Mas naquelas circunstâncias, naquela cidade onde, tinha certeza, não voltaria nunca mais, se permitiu a liberdade de olhar e sorrir para um desconhecido, justamente por saber que nunca mais o veria, isto é, sem correr nenhum perigo. Ela não sabia que quando um homem e uma mulher se olham é sempre um risco.
Nesse domingo, 30 anos depois, ela conheceu a nostalgia de não ter feito outra coisa na vida a não ser cuidar do marido, da casa, da família. E pensa: se naquele dia tivesse descido do trem e embarcado no outro, sem uma só explicação? Que vida teria tido, num país cuja língua desconhecia, com uma cultura diferente, sem um parente, um amigo? Teria sido feliz, pelo menos por uns tempos? E se fosse hoje, teria coragem?
Faz festa na cabeça de um neto, se levanta para ir à cozinha cuidar do almoço e fica na dúvida; teria ou não coragem?
Ela sabe o quanto são inúteis esses pensamentos; mas por outro lado percebe que naquela varanda, com aquele calor, lembrar daquela manhã gelada naquela cidade tão distante, lembrar daquele desconhecido, talvez o único homem que teve coragem de olhar sem piscar e sem baixar os olhos, até que ajuda.
Se sente uma adúltera, e sem a menor culpa.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br


Texto Anterior: Polícia flagra acordo que não foi cumprido
Próximo Texto: Há 50 anos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.