São Paulo, domingo, 16 de abril de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DANUZA LEÃO

A vida é cruel

Eles tiveram um romance; não um grande romance, mas um romance, mais importante para ela do que para ele, como quase sempre.
Ela sofreu, penou, passou noites em claro esperando por telefonemas que não vieram, mas às vezes ele aparecia, com desculpas esfarrapadas nas quais ela acreditava porque queria, e assim foram levando durante um tempo, até que um dia acabou de vez.
Acabou de vez, depois de um tempo ela lembrava dele só às vezes, mas cada vez menos, e por uma dessas coisas do destino, nunca mais se viram, nem por acaso, andando na rua.
Anos se passaram; um dia ela entrou num aeroporto, procurando o portão de embarque, e viu lá longe, sentado, alguém que parecia ser ele. Será? De óculos escuros, pode perfeitamente olhar sem dar bandeira, e olhou. Não, não podia ser. Não podia ser, só que era.
Um começo de calvície, um paletó meio churreado, e sobretudo um ar de derrota, tudo que ela achava lindo e charmoso no tempo em que era apaixonada. Ela passou reto e foi parar dois portões mais adiante do que o seu, para ter tempo de respirar (e de medo que ele a reconhecesse e tivessem que conversar). Sentou-se lá longe e ficou de olho, para evitar o encontro.
Daria a vida, naquela hora, por um cigarro, é para isso que eles existem, mas nesses malditos aeroportos modernos não se pode fumar. Pegou um jornal deixado na cadeira ao lado e fingiu que lia as notícias econômicas, enquanto pensava nas loucuras que fez por aquele homem e nas que teria feito, se ele tivesse deixado. Pensou também que poderia ser mais normal, passar por ele e dizer um oi, como você está, perguntar como a vida vai indo, mas não teve coragem. Tentou pensar em outra coisa, mas não conseguiu, só queria embarcar logo, e que ele não a visse, pelo amor de Deus.
Depois do que lhe pareceram horas, o embarque foi dado, o que significava que ela teria que passar de novo pelo lugar em que ele estava sentado, se é que ele ainda estivesse lá. Tinha que encarar, ou então dormir numa cadeira do aeroporto. Tomou coragem, respirou fundo e foi.
Viu que ele continuava no mesmo lugar, e ela tinha que passar bem diante dele. Ajeitou os óculos e passou, com um olhar bem distraído, mas olhando, pelo rabo do olho. E teve a dolorosa impressão que ele a tinha visto e que não tinha se dirigido a ela pelos mesmos motivos: talvez a tivesse achado feia, velha, churreada, com ar de derrotada pela vida.
Foi das primeiras a entrar no avião e sentou-se bem no fundo, para ver se ele ia entrar no mesmo que ela, o que felizmente não aconteceu.
Pensou em como o mundo é cruel, e quando a comissária de bordo passou oferecendo um lanche, pediu um uísque -só que na ponte aérea não servem bebidas alcoólicas.
Teve que segurar o tumulto dentro dela até chegar em casa, tirar o gelo e tomar não um, mas três uísques, um depois do outro.
E só parou no terceiro porque, se continuasse, seria capaz de cair em prantos, não por ele, não por ela, mas por tudo.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br


Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: Saúde pública: Especialista prevê crescimento da dengue
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.