São Paulo, sábado, 16 de outubro de 2004

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LETRAS JURÍDICAS

Remédios não têm remédio

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

De tempos em tempos, a indústria farmacêutica surge na mídia com o reconhecimento de que certos medicamentos causam danos graves em lugar das vantagens proclamadas pelos laboratórios. A história da segunda metade do século 20 foi pródiga em alternativas, desde os efeitos da talidomida até as críticas surgidas nos Estados Unidos a propósito do Tylenol e, entre nós, a proibição do Merthiolate. Agora, com o produto Vioxx, do laboratório Merck, um bom número de leitores pergunta se há remédio seguro para pacientes que dele necessitem, se a lei oferece garantias ao consumidor e, para completar, se os órgãos de controle dos remédios estão capacitados tecnicamente para exercerem sua função.
A primeira resposta é do direito constitucional. Conforme é evidente ao espírito mais desarmado, a responsabilidade primária pela saúde do povo é do Estado, tanto nos cuidados preventivos como na medicina curativa. Uma das formas de satisfazer os dois requisitos é, logicamente, a preservação da qualidade dos remédios através dos controles do poder público sobre a produção de remédios como garantia essencial da saúde. Por falar em saúde, é muito provável que o leitor não saiba quantas vezes a palavra saúde aparece na Constituição. Eu, pelo menos, não sabia. Contei duas vezes, mas achei números diferentes. Fico com 29 vezes, pois a precisão absoluta é desnecessária neste caso. O vocábulo saúde surge na Carta de 1988, desde os direitos sociais (artigo 6º) até o capítulo no título da seguridade social, a contar do artigo 194.
Os remédios receitados, vendidos e usados no Brasil são sujeitos à fiscalização de suas fórmulas e à aprovação no país de origem. A maior parte dos produtos farmacêuticos vendidos em nosso país vem de laboratórios estrangeiros, que, em suas matrizes, são submetidos a fiscalização rigorosa. Pois, apesar disso, de tempos em tempos, descobre-se que cá, como lá, os laboratórios, na preocupação concorrencial do fazer dinheiro (são indústrias com a finalidade precípua de dar lucro), chegam a lançar na praça fórmulas mal testadas, insuficientemente provadas.
Ora, a Constituição e as leis têm normas impositivas, destinadas a preservar a saúde do povo, sobretudo nas camadas mais pobres. Se tais regras jurídicas e as normas científicas e técnicas correspondentes fossem cumpridas com o necessário rigor, é de crer que não seria possível episódio como o atual, de um remédio ser recolhido pelos perigos causados à saúde de seus consumidores. Onde está a falha? Na insuficiência de leis mais rigorosas? Não me parece que essa seja a resposta adequada. O desenvolvimento de práticas oficiais capacitadas para o efetivo controle da qualidade dos remédios e das formulações farmacêuticas seria o ideal, mas isso é difícil de realizar. Ainda tendemos a acreditar em verificações feitas fora do Brasil, com melhor aparelhamento científico. De qualquer modo, surgido o episódio agora revelado, as autoridades têm o dever de explicar como foi possível a falha em permitir a venda. E terão de dizer, ao menos, se o recolhimento do produto foi iniciativa espontânea do laboratório ou se decorreu da diligência dos órgãos nacionais. Se saúde aparece tantas vezes na Constituição, é, entre outras razões, para dar legitimidade à exigência de explicação para a demora em retirar o Vioxx dos balcões das farmácias. Diligência e moralidade são bons remédios constitucionais.


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