São Paulo, terça-feira, 16 de outubro de 2007

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RUBEM ALVES

A dança


Sacramento é uma coisa visível que carrega em si uma coisa invisível. A canção tem o Ladon Sheats dentro dela

PASSADOS MESES, RECEBI uma carta de uma mulher que eu não conhecia. Escrevia-me a pedido de Ladon Sheats. Ele estava morrendo e lhe pedira que me escrevesse. Câncer, e recusava-se a qualquer tratamento. Desejava morrer como tinha vivido, livre e sem medo. Mandava-me um recado de "adeus". Escrevi-lhe então contando-lhe que iria plantar uma árvore para ele, num lugar de silêncio onde ela, a árvore, pudesse contemplar as montanhas ao longe. Disse-lhe o quanto o amava. E que sentiria saudades. Disse-lhe também o quanto admirava seu jeito de viver, sua integridade, sua coragem, seu amor à solidão. E despedi-me com um abraço apertado, dizendo que em breve nos encontraríamos.

 

Numa de suas cartas, ele me dissera que marcharam para os silos atômicos cantando o hino "The Lord of the Dance". Era o seu hino preferido. Esse hino nasceu de um pequeno grupo religioso chamado "Shakers", que existiu no século 19 na Nova Inglaterra. O que há de curioso sobre esse grupo é que seus cultos eram orgias de dança! O espírito possui o corpo, e o corpo dança...
O nome original da canção é "Simple Gifts", dádivas singelas. Faz anos, visitando a aldeia onde os "Shakers" viviam, comprei um CD de "Simple Gifts", de total simplicidade. Flauta e violão. Esse tema é tão simples e bonito que tem sido usado em vários contextos musicais.
Aran Copland, compositor norte-americano, fez desse hino o tema do penúltimo movimento da sua peça sinfônica "Appalachian Spring". Mas esse tema ganhou reconhecimento universal com o espetáculo de dança "The Lord of the Dance" (há em DVD) e a performance fantástica do bailarino Michael Flatley. Na abertura do show, uma ninfinha toca o tema numa flauta doce...

 


Imaginei que vocês, meus leitores, poderiam ficar curiosos acerca da letra desse hino. Tentei traduzir. Ficou feio, sem rima e sem métrica. Então vou contar com as minhas palavras a história que ele conta.
É a história de Jesus, de um jeito diferente, um Deus dançarino! Dançou na manhã quando o mundo começou. Dançou com o sol, com a lua e as estrelas... E, achando que o melhor lugar para dançar era a Terra, deixou o céu onde vivia para viver entre nós... Mas há muitos que não gostam de dançar. São duros de cara feia. Dançou no dia santo e curou um aleijado. Os santarrões fecharam a cara e disseram que era pecado. Quem não gosta de dançar é o Diabo, tipo sério que só gosta de velórios. Resolveu matar o dançarino e pulou nas suas costas. Mas mesmo assim o Senhor da Dança dançou e sobre a morte triunfou. Porque a dança é a vida que volta sempre. Assim, diz o refrão, dance, dance, não importa quem você seja. Da dança eu sou o Senhor. E sou eu que vou lhe ensinar a coreografia de amor...
Sempre que ouço a canção "The Lord of the Dance", seja no CD "Simple Gifts", seja no "Appalachian Spring", seja na menina que toca a flauta doce, eu me lembro do Ladon Sheats. Essa canção é um sacramento para mim. Sacramento é uma coisa visível que carrega dentro de si uma coisa invisível. A canção carrega o Ladon Sheats dentro dela.
A árvore está lá na montanha em Pocinhos do Rio Verde, subindo para os céus. Sempre que vejo o liquidambar eu me lembro do Ladon Sheats, um homem que nunca vi, mas que sempre amei...


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