São Paulo, segunda-feira, 16 de novembro de 2009

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MOACYR SCLIAR

A cura pelo beijo


Estão namorando (e beijando muito). Descobriu o que é bom para a tosse, ao menos para a que nasce da neurose


 

Leandro Vissotto, jogador da seleção brasileira de vôlei e do Trentino, da Itália, foi repreendido por membro da organização do Mundial de Clubes de Vôlei por beijar sua mulher após a conquista do título. Folha Online

 

Estudantes chineses denunciaram que uma universidade do leste da China criou "patrulhas do beijo" para policiar casais que estejam se beijando nas dependências do instituto. As patrulhas são formadas por estudantes voluntários da própria faculdade, que verificam se os casais estão se abraçando, beijando-se ou sentados próximos demais. As patrulhas são supervisionadas por professores. Uma moça descreveu contou que ela e o namorado estavam sentados, trocando beijos; um patrulheiro se colocou atrás deles e ficou tossindo até que eles se separassem. Folha Online

 

ELE ODIAVA beijos, sobretudo beijos em público. Era uma coisa que deixava-o profundamente perturbado, fora de si, quase. Mas, por outro lado, vibrava de alegria quando lia alguma notícia sobre repressão a beijoqueiros. A nota sobre o jogador brasileiro de vôlei Leandro Vissotto, repreendido por um membro da organização do Mundial de Clubes de Vôlei por beijar sua mulher após a conquista de um título, deixou-o simplesmente eufórico. O mundo tem esperança, repetia a si próprio, a moralidade será vencedora.
Os amigos ficavam espantados e consternados diante dessa insólita situação, mesmo porque, aos 17 anos, ele era um jovem bonito, que poderia facilmente arranjar uma namorada -e beijá-la à vontade, se fosse o caso. Não era o caso. Ele era, por assim dizer, o líder de uma imaginária cruzada contra a imoralidade -saias curtas, maquiagem excessiva- mas, principalmente, contra o beijo, para ele uma conduta absolutamente afrontosa. Jurara para si próprio que jamais casal algum se beijaria perto dele.
Mas como evitar essa situação? Não poderia, claro, recorrer à violência. Alguns professores que o apoiavam haviam feito claras advertências neste sentido. Não, teria de recorrer a algum meio eficiente mas não agressivo para expressar sua repulsa. E aí lhe ocorreu: a tosse. Todo mundo sabe que tossir é uma forma fácil e prática de chamar a atenção, de advertir pessoas inconvenientes. Naquele mesmo dia fez a primeira experiência nesse sentido. Avistou, na universidade, um jovem casal se beijando. Colocou-se atrás deles e começou a tossir escandalosamente -até que eles pararam.
O rapaz, irritado, levantou-se e saiu dali, resmungando. Mas a moça, que ele aliás conhecia, ficou a olhá-lo -aparentemente sem qualquer rancor, e até com simpatia, o que deixou-o muito perturbado. Deu as costas e foi embora. À noite, estava no quarto, sozinho, escrevendo um artigo sobre os riscos de transmissão de doenças pelo beijo, quando alguém bateu à porta. Abriu, e era a moça. Sorrindo, ela lhe estendeu um frasco.
Era xarope contra a tosse. Num impulso, ele puxou-a para si e beijou-a apaixonadamente, o primeiro e decisivo beijo de sua vida. Estão namorando (e beijando muito). Quanto ao xarope, deu-o a um amigo. Descobriu o que é bom para a tosse, ao menos para a tosse que nasce da neurose: é o beijo. Grande, grande remédio.

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.

moacyr.scliar@uol.com.br


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