São Paulo, quinta-feira, 17 de março de 2005

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PASQUALE CIPRO NETO

Ordem, pontuação e ênfase

Estava na primeira página da Folha de ontem: "Alckmin, como Lula e Serra, sofre derrota no Legislativo". O exemplo é ótimo para que se discuta a escolha da ordem dos termos.
Vamos lá, pois. De início, é preciso deixar claro que a seqüência escolhida pelo redator é perfeitamente possível. Com essa ordem (e com o verbo no singular -"sofre"), enfatiza-se "Alckmin", ponto central do título jornalístico. Cumpre notar o papel das vírgulas, que isolam a expressão comparativa "como Lula e Serra".
Teria sido possível também iniciar o título jornalístico com a expressão comparativa (em que, não por acaso, Lula antecede Serra). Teríamos, pois, esta redação: "Como Lula e Serra, Alckmin sofre derrota no Legislativo". Com essa ordem, enfatizar-se-ia a semelhança das situações vividas por Alckmin, Lula e Serra.
Antes que me esqueça, convém salientar que o título tinha apenas duas linhas; a segunda linha seria a mesma ("sofre derrota no Legislativo"), qualquer que fosse a ordem escolhida pelo redator. Moral da história: conscientemente ou não, o redator enfatizou a derrota de Alckmin, o que, em termos jornalísticos, parece fazer todo o sentido do mundo (trata-se do fato mais recente).
Independentemente das circunstâncias, o que conta nessa discussão é o fato de que, em nossa língua, a escolha da ordem dos termos tem papel fundamental na expressão da mensagem. Um belo exemplo disso está na genial "O Homem Velho" (do disco "Velô", de 1984), de Caetano Veloso. Levado talvez pela necessidade de encaixar a letra na música (e/ou vice-versa), o poeta optou pela ordem indireta em "As linhas do destino nas mãos a mão apagou".
Pensando bem, não custa nada citar a estrofe toda: "A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol / As linhas do destino nas mãos a mão apagou / Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock'n'roll / As coisas migram e ele serve de farol". Com a ordem escolhida, além de enfatizar "as linhas do destino nas mãos" (complemento de "apagou"), o poeta consegue produzir o expressivo encontro de "nas mãos" com "a mão". Agora, ponha em outra ordem os termos desse verso. Que tal? Parece outra mensagem, não?
Bem, voltemos ao título jornalístico. Teria sido possível empregar o verbo no plural ("sofrem")? Os registros dizem que sim, desde que não se separem os sujeitos por vírgula. Teríamos isto: "Alckmin como Lula e Serra sofrem derrota no Legislativo". Com essa ordem e essa flexão verbal, haveria destaque para o conjunto, ou seja, para os três integrantes do grupo.
O fato é que, embora gramaticalmente possível, essa construção esbarraria numa questão delicada: a do tempo. A frase acentuaria uma simultaneidade que não existe, já que a derrota de Lula (na eleição para a presidência da Câmara Federal) e a do prefeito José Serra (para a da Câmara da cidade de São Paulo) são mais antigas do que a do governador Geraldo Alckmin (para a presidência da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo).
Moral da história: a escolha da ordem dos termos e a da flexão verbal podem interferir na expressão, no efeito ou no alcance da mensagem. Em se tratando de língua escrita, portanto, o melhor que se pode fazer é tratar dessa questão com muito carinho, ou seja, ler e reler, levar em conta as circunstâncias etc. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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