São Paulo, sexta-feira, 17 de novembro de 2006

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BARBARA GANCIA

Admirável mundo novo?


Quem assiste à Fox acaba acreditando que espinafre causa cegueira e que todo imigrante que usa barba é homem-bomba em potencial


POR PREZAR meu sistema nervoso, raramente assisto ao canal de TV paga Fox News. Como é de conhecimento interplanetário, os assinantes da Fox são expostos diariamente a dezenas de reportagens de cunho alarmista, capazes de levar o mais pacato dos seres a delírios paranóicos irreversíveis.
Quem assiste ao noticiário da Fox com alguma regularidade acaba acreditando que contrairá melanoma se ficar exposto ao sol por mais de cinco minutos, que espinafre causa cegueira, que clínicas de aborto (prática legalizada nos Estados Unidos) devem ser bombardeadas por armas de destruição em massa e que todo imigrante que usa barba é um homem-bomba em potencial.
Acontece que, na quarta-feira, fui impelida a assistir à emissora que, em seu slogan, afirma produzir um noticiário "justo e equilibrado". Explico: a Regan Books, uma subsidiária da Fox, está lançando o livro "If I Did It" ("Se Eu Tivesse Feito"), a infame confissão -no condicional- de O.J. Simpson. O livro relata como o chamado "crime do século" nos Estados Unidos teria ocorrido "se" Simpson o tivesse cometido.
Passados 11 anos do assassinato da mulher, Nicole Simpson, e do amigo dela, Ron Goldman, ninguém mais duvida de que Simpson tenha sido o autor dos crimes. Ainda assim, nos dias 27 e 28 de novembro, a fim de turbinar as vendas do livro, ele irá conceder uma entrevista exclusiva aos assinantes da Fox, contando todos os detalhes da matança, dada, é bom lembrar, a circunstância de que ele pudesse ter sido o culpado.
Vivemos tempos inacreditáveis. Pouco antes da reportagem sobre o livro de um assassino que tem a cara-de-pau de usar de artifícios semânticos para driblar a lei e faturar em cima das mortes que perpetrou, a Fox exibiu outras duas matérias que dão bem o tom do "zeitgeist", ao que os alemães chamam de "o espírito do nosso tempo".
A primeira mostrou uma fila de gente acampada há mais de uma semana em frente à loja da Sony, em Nova York. Eles estão lá passando o pão que o diabo amassou (no outono nova-iorquino, as temperaturas chegam a 0C de madrugada), sem tomar banho ou fazer qualquer outra coisa senão esperar, só para comprar a primeira leva do Playstation 3, que está sendo lançado mundialmente nestes dias.
A segunda reportagem falou da controvérsia sobre a regulamentação do Electronic Data Recorder (EDR). Para quem não sabe, o EDR é um chip que registra informações sobre a conduta do motorista antes, durante e depois de um acidente. Espécie de caixa-preta do automóvel, o sistema foi introduzido pela General Motors em 1974 a fim de monitorar as reações do "air bag".
Desenvolvido para aperfeiçoar a segurança, o EDR acabou adquirindo contornos de Big Brother. Em 2005, para a felicidade de seguradoras e autoridades de trânsito, as maiores interessadas em ver o dispositivo funcionando, 64% dos automóveis produzidos nos EUA saíram de fábrica com um EDR sem que o comprador do carro fosse avisado. Isso levou entidades de defesa do consumidor a protestar, e agora o assunto está nas mãos do DER deles lá. É como eu digo e repito: depois do 11 de Setembro, nada mais me choca neste mundão de meu Deus.

barbara@uol.com.br


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