São Paulo, segunda-feira, 17 de dezembro de 2001

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MOACYR SCLIAR

A chave da casa

 Pais preferiam ficar acordados para abrir a porta a fornecer a chave da casa antes da hora. A chave não era só uma chave. Simbolizava autonomia. FolhaEquilíbrio (Anna Veronica Mautner), 13.dez.2001

Filho único de mãe viúva, ele tinha a clara noção do que era ser controlado. Meu filho, coma mais um pouco, você está muito magro. Meu filho, abrigue-se, está chovendo, você pode ficar resfriado. Meu filho, estou lhe achando estranho, você não está doente?
Ele aceitava tudo isso, mesmo porque reconhecia o esforço da mãe. Costureira, ela dava duro para sustentar a casa, pagar seus estudos. Mas sabia que em algum momento teria de lutar por sua independência. Em algum momento teria de provar que era um ser humano autônomo, disposto a seguir o seu próprio caminho. E assim, um dia, pediu a chave da casa. Não era sem tempo, diga-se de passagem: já estava com 18 anos, era o único em seu círculo de amigos para quem a mãe tinha de abrir a porta quando ele voltava (não muito tarde: para ela, meia-noite era o horário limite, a partir do qual tudo de horrível podia acontecer).
Para sua surpresa, a mãe, ainda que relutante, concordou com o pedido e deu-lhe uma cópia da chave. Que ele não chegou a usar. No momento em que, voltando para casa, ia introduzir a chave na fechadura, a porta se abria: era a mãe, que ali estava à sua espera. Você sabe que não durmo enquanto você não chega, dizia, à guisa de desculpa. Ele protestava: mas é um absurdo, mamãe, você ainda acordada, amanhã você tem de trabalhar. No fundo, porém, ficava contente com isso. Como sempre acontece nessas situações, havia uma espécie de cumplicidade entre eles.
Mas a cumplicidade terminou: a mãe adoeceu e, depois de uma longa agonia, acabou falecendo. Ele ficou inconsolável. Pensou até em mudar de casa, mas não conseguiu fazê-lo: seria uma traição. De modo que ali ficou, às voltas com doces e penosas lembranças. Os anos passaram, e tudo indicava que permaneceria um solteirão, mas um dia conheceu uma moça cujo sorriso lhe lembrava muito o de sua falecida mãe. Não só por causa disso, claro, mas sobretudo por causa disso, apaixonou-se por ela. Casaram-se e foram morar na casa dele. A ela, a idéia não agradara muito, mas a verdade é que se tratava de uma solução prática, como ele fez questão de frisar.
Ao cabo de dois anos, o sorriso desaparecera do rosto dela. O que ele via, agora, era uma carranca: brigavam muito e por coisas de menor importância. Uma noite, furioso, ele saiu de casa. Seu propósito era procurar uma mulher, qualquer mulher, e cair na farra. Não o conseguiu, obviamente. Por causa da chave: ela lhe lembrava que, afinal, tinha obrigações com a esposa e que precisava voltar para casa. Foi o que fez, às cinco da manhã. Mas, para sua surpresa, não pôde entrar: enquanto ele estivera fora, ela mandara trocar a fechadura.
Separaram-se, ela ficou com a casa, ele mora num minúsculo apartamento. Mas ainda conserva a antiga chave. Não sabe se é um talismã ou uma maldição. Na dúvida, fica com ela.


Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal



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