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MOACYR SCLIAR
A chave da casa
Pais preferiam ficar acordados para
abrir a porta a fornecer a chave da
casa antes da hora. A chave não era
só uma chave. Simbolizava autonomia.
FolhaEquilíbrio (Anna Veronica
Mautner), 13.dez.2001
Filho único de mãe viúva, ele tinha a clara noção do
que era ser controlado. Meu filho,
coma mais um pouco, você está
muito magro. Meu filho, abrigue-se, está chovendo, você pode ficar
resfriado. Meu filho, estou lhe
achando estranho, você não está
doente?
Ele aceitava tudo isso, mesmo
porque reconhecia o esforço da
mãe. Costureira, ela dava duro
para sustentar a casa, pagar seus
estudos. Mas sabia que em algum
momento teria de lutar por sua
independência. Em algum momento teria de provar que era um
ser humano autônomo, disposto
a seguir o seu próprio caminho. E
assim, um dia, pediu a chave da
casa. Não era sem tempo, diga-se
de passagem: já estava com 18
anos, era o único em seu círculo
de amigos para quem a mãe tinha de abrir a porta quando ele
voltava (não muito tarde: para
ela, meia-noite era o horário limite, a partir do qual tudo de horrível podia acontecer).
Para sua surpresa, a mãe, ainda
que relutante, concordou com o
pedido e deu-lhe uma cópia da
chave. Que ele não chegou a usar.
No momento em que, voltando
para casa, ia introduzir a chave
na fechadura, a porta se abria:
era a mãe, que ali estava à sua espera. Você sabe que não durmo
enquanto você não chega, dizia, à
guisa de desculpa. Ele protestava:
mas é um absurdo, mamãe, você
ainda acordada, amanhã você
tem de trabalhar. No fundo, porém, ficava contente com isso. Como sempre acontece nessas situações, havia uma espécie de cumplicidade entre eles.
Mas a cumplicidade terminou:
a mãe adoeceu e, depois de uma
longa agonia, acabou falecendo.
Ele ficou inconsolável. Pensou até
em mudar de casa, mas não conseguiu fazê-lo: seria uma traição.
De modo que ali ficou, às voltas
com doces e penosas lembranças.
Os anos passaram, e tudo indicava que permaneceria um solteirão, mas um dia conheceu uma
moça cujo sorriso lhe lembrava
muito o de sua falecida mãe. Não
só por causa disso, claro, mas sobretudo por causa disso, apaixonou-se por ela. Casaram-se e foram morar na casa dele. A ela, a
idéia não agradara muito, mas a
verdade é que se tratava de uma
solução prática, como ele fez
questão de frisar.
Ao cabo de dois anos, o sorriso
desaparecera do rosto dela. O que
ele via, agora, era uma carranca:
brigavam muito e por coisas de
menor importância. Uma noite,
furioso, ele saiu de casa. Seu propósito era procurar uma mulher,
qualquer mulher, e cair na farra.
Não o conseguiu, obviamente.
Por causa da chave: ela lhe lembrava que, afinal, tinha obrigações com a esposa e que precisava
voltar para casa. Foi o que fez, às
cinco da manhã. Mas, para sua
surpresa, não pôde entrar: enquanto ele estivera fora, ela mandara trocar a fechadura.
Separaram-se, ela ficou com a
casa, ele mora num minúsculo
apartamento. Mas ainda conserva a antiga chave. Não sabe se é
um talismã ou uma maldição. Na
dúvida, fica com ela.
Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às
segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal
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