São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2006

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Anencéfala, bebê Marcela de Jesus vira ícone antiaborto

Menina completou 25 dias na sexta-feira e respira sem ajuda de instrumentos

Pediatra que cuida da garota já cogita dar alta; consenso científico previa que viveria poucas horas ou, no máximo, alguns dias

LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A PATROCÍNIO PAULISTA (SP)

Desde 20 de novembro, o bispo emérito de Franca, dom Diógenes Silva Matthes, 75, cumpre uma obrigação diária: telefona para o diácono Fábio Costa, 49, da vizinha cidade de Patrocínio Paulista (a 413 km de São Paulo), e pede notícias: "Você já foi ver o meu menino Jesus hoje?".
Dom Diógenes se refere ao bebê Marcela de Jesus Galante Ferreira, 25 dias de vida completados na última sexta-feira.
Diagnosticada anencéfala desde que era um feto de quatro meses, de Marcela de Jesus esperava-se que morresse ainda no útero da mãe, a agricultora Cacilda Galante Ferreira, 36.
Como a gravidez chegasse a termo, e a mãe começasse a sofrer as dores do parto, uma cesárea deu Marcela à luz -aí o consenso científico previa que viveria poucas horas. No máximo, dias.
Esse consenso fundamentou a concessão de dezenas de autorizações judiciais para a "antecipação do parto de fetos anencéfalos ou inviáveis". Na prática, trata-se de uma "interrupção da gestação" ou "abortamento", mas essas expressões pouco aparecem nos textos dos juízes porque o Código Penal em vigor só autoriza o aborto em casos de estupro ou risco de vida para a mãe.
Com a anencéfala Marcela de Jesus (o nome é uma homenagem ao padre da Renovação Carismática Marcelo Rossi), a mãe dela, Cacilda, foi informada, assim que diagnosticado o problema no feto: poderia pedir autorização para "antecipar o parto". Católica, a mãe recusou a sugestão.
Cacilda relembra: "Os médicos nunca me davam esperança nenhuma. Todas as vezes que eu ia ao médico saía triste. Mas era só sentir o bebê se mexendo e chutando a minha barriga que eu ficava feliz de novo."
No dia 20, uma segunda-feira, dia do nascimento de Marcela, o padre da paróquia de Patrocínio, Cássio Dias Borges, estava de folga. O jeito foi chamar Fábio Costa, diácono há cinco anos, com autoridade para ministrar os sacramentos, batismo entre eles.
Costa assistiu ao parto de pé, ao lado do marido de Cacilda, Dionisio Ferreira. Tudo muito rápido, cortou-se o cordão umbilical da criança, ela foi limpa e aspirada. E começou o batismo, correndo, para evitar que a menina morresse pagã. O pai chorava na sala; a mãe ainda estava sendo suturada -não pôde assistir à cerimônia. Água benta lançou-se três vezes na cabeça de Marcela, enquanto os homens rezavam. Ninguém acreditava que o bebê agüentaria.
Contra todas as previsões, entretanto, o coração da menina desprovida de córtex cerebral continuou batendo. Ela reage como que assustada quando no quarto da Santa Casa de Patrocínio, onde está internada, toca o triiiiim do velho telefone ainda com disco.
Quando alguém põe o dedo perto de sua mãozinha, ela o agarra, como qualquer bebê.
Sente dor "na parte que lhe falta da cabeça", como explica a pediatra Marcia Beani Barcellos, que cuida dela.

Sons
De vez em quando, Marcela emite pequenos sons na forma de um "a" curto. Cúmulo da surpresa, o bebê mamou no peito da mãe -bastou encostar em sua boca o peito de Cacilda.
E a pediatra já cogita dar alta para o bebê ir para casa. Católicos falam abertamente em "milagre" para se referir à sobrevivência de Marcela de Jesus, agora transformada em símbolo da luta antiaborto.
No site de relacionamentos Orkut, a comunidade "Força Marcela Oramos por Vc", criada em 29 de novembro, já reúne 511 membros. Segue crescendo.
Um documentário sobre a vida do bebê e sua família está em fase de produção, o câmera entrando e saindo do quarto do hospital.
Todos os dias, rodas de orações são formadas na Santa Casa. Na terça-feira, ativistas da organização Santa Gianna Beretta Molla, sediada em Franca e autodefinida como "a favor da família, em defesa da vida", foram rezar o "Creio em Deus Pai" com Cacilda e o diácono, na presença do bebê.
Recorde esse nome: santa Gianna, a santa antiaborto. Canonizada pelo papa João Paulo 2º em maio de 2004, seu exemplo foi ter-se recusado a fazer um aborto quando, grávida, os médicos lhe disseram que levar a gestação a termo a mataria.
Conforme a previsão dos médicos, ela morreu ao dar à luz. A criança viveu. Dois milagres atribuídos a Gianna, garantiram-lhe a canonização, ambos no Brasil, apesar de a santa ser italiana (de Milão) e nunca ter estado em vida por aqui.
Segundo o ginecologista e obstetra Thomaz Rafael Gollop, professor da Universidade de São Paulo, Marcela de Jesus tem os hemisférios cerebrais destruídos, um diagnóstico fechado de anencefalia e um prognóstico certo: o da progressiva deterioração de seu organismo, até o perecimento.
Malformação com causas multifatoriais, a anencefalia atinge mais meninas do que meninos e, explica o professor, em 60% dos casos, relaciona-se a uma dieta materna pobre em ácido fólico durante o mês antecedente e posterior à concepção. "Infelizmente é um quadro irreversível", diz o docente.
O chefe do setor de neurologia infantil da Universidade Federal de São Paulo, o professor-adjunto Luiz Celso Vilanova, explica que, na anencefalia, uma parte do cérebro, o córtex cerebral, responsável pelas funções mentais superiores, não chega a se formar.
"O que existe é o tronco cerebral", uma estrutura primitiva que coordena reações a estímulos, batimentos cardíacos e respiração, entre outras funções.
"O bebê anencéfalo é incapaz de sentir -para isso ele precisaria do córtex cerebral-, mas ele é capaz de reagir a estímulos", explica o professor.
"Um bebê anencéfalo pode ter, no máximo, reações reflexas, como aquelas típicas do estado vegetativo, sem traço de consciência. Emoções, sentimentos e pensamentos estão fora do horizonte de um bebê nessas condições", afirma.
Diretora da Anis, ONG que é referência feminista em pesquisa sobre bioética, a antropóloga Debora Diniz tem assessorado várias mulheres grávidas de fetos anencéfalos nos últimos anos.
Sobre Marcela de Jesus, Debora entende que não se pode fazer da excepcionalidade do caso uma norma que se imponha sobre as grávidas de fetos anencéfalos. "Em um Estado laico, é absurdo pretender que todas as mulheres grávidas de fetos anencéfalos passem a acreditar em milagres."
"É à mãe que cabe decidir se deve ou não prosseguir com a gestação. Tanto seria errado impor a interrupção da gravidez quanto seu contrário. O caso desse bebê só reforça a tese de que se trata de uma decisão que só cabe aos parentes e a mais ninguém tomar", diz.
Na pequena Patrocínio Paulista, 14 mil habitantes, nos contrafortes da serra da Canastra, quase divisa com Minas Gerais, existe o bairro Palmital, onde era a fazenda de mesmo nome, centenária e agora loteada entre os herdeiros, todos parentes dos pais do bebê anencéfalo, que também moram lá.
A prima Nelsina Terezinha Figueira de Freitas, 52, mora ao lado da casa dos Ferreira, em uma construção de taipa de pilão, curral anexo, no meio de um cafezal. Vergada diante de uma Nossa Senhora, a prima conta o que viu na Santa Casa, ao visitar Marcela de Jesus: "Eu vi um anjo vestido de azul, uma bênção. Ela sorria e soltava um gorgonadinho, como se quisesse falar alguma coisa". É a fé.


Colaborou LUÍS FERNANDO MANZOLI , da Folha Ribeirão

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