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Anencéfala, bebê Marcela de Jesus vira ícone antiaborto
Menina completou 25 dias na sexta-feira e respira sem ajuda de instrumentos
Pediatra que cuida da garota já cogita dar alta;
consenso científico previa que viveria poucas horas ou, no máximo, alguns dias
LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A PATROCÍNIO
PAULISTA (SP)
Desde 20 de novembro, o bispo emérito de Franca, dom
Diógenes Silva Matthes, 75,
cumpre uma obrigação diária:
telefona para o diácono Fábio
Costa, 49, da vizinha cidade de
Patrocínio Paulista (a 413 km
de São Paulo), e pede notícias:
"Você já foi ver o meu menino
Jesus hoje?".
Dom Diógenes se refere ao
bebê Marcela de Jesus Galante
Ferreira, 25 dias de vida completados na última sexta-feira.
Diagnosticada anencéfala
desde que era um feto de quatro meses, de Marcela de Jesus
esperava-se que morresse ainda no útero da mãe, a agricultora Cacilda Galante Ferreira, 36.
Como a gravidez chegasse a termo, e a mãe começasse a sofrer
as dores do parto, uma cesárea
deu Marcela à luz -aí o consenso científico previa que viveria
poucas horas. No máximo, dias.
Esse consenso fundamentou
a concessão de dezenas de autorizações judiciais para a "antecipação do parto de fetos anencéfalos ou inviáveis". Na
prática, trata-se de uma "interrupção da gestação" ou "abortamento", mas essas expressões pouco aparecem nos textos dos juízes porque o Código
Penal em vigor só autoriza o
aborto em casos de estupro ou
risco de vida para a mãe.
Com a anencéfala Marcela de
Jesus (o nome é uma homenagem ao padre da Renovação Carismática Marcelo Rossi), a mãe dela, Cacilda, foi informada, assim que diagnosticado o
problema no feto: poderia pedir autorização para "antecipar
o parto". Católica, a mãe recusou a sugestão.
Cacilda relembra: "Os médicos nunca me davam esperança
nenhuma. Todas as vezes que
eu ia ao médico saía triste. Mas
era só sentir o bebê se mexendo
e chutando a minha barriga que
eu ficava feliz de novo."
No dia 20, uma segunda-feira, dia do nascimento de Marcela, o padre da paróquia de Patrocínio, Cássio Dias Borges,
estava de folga. O jeito foi chamar Fábio Costa, diácono há
cinco anos, com autoridade para ministrar os sacramentos,
batismo entre eles.
Costa assistiu ao parto de pé,
ao lado do marido de Cacilda,
Dionisio Ferreira. Tudo muito
rápido, cortou-se o cordão umbilical da criança, ela foi limpa e
aspirada. E começou o batismo,
correndo, para evitar que a menina morresse pagã. O pai chorava na sala; a mãe ainda estava
sendo suturada -não pôde assistir à cerimônia. Água benta
lançou-se três vezes na cabeça
de Marcela, enquanto os homens rezavam. Ninguém acreditava que o bebê agüentaria.
Contra todas as previsões,
entretanto, o coração da menina desprovida de córtex cerebral continuou batendo. Ela reage como que assustada
quando no quarto da Santa Casa de Patrocínio, onde está internada, toca o triiiiim do velho
telefone ainda com disco.
Quando alguém põe o dedo
perto de sua mãozinha, ela o
agarra, como qualquer bebê.
Sente dor "na parte que lhe falta da cabeça", como explica a
pediatra Marcia Beani Barcellos, que cuida dela.
Sons
De vez em quando, Marcela
emite pequenos sons na forma
de um "a" curto. Cúmulo da
surpresa, o bebê mamou no
peito da mãe -bastou encostar
em sua boca o peito de Cacilda.
E a pediatra já cogita dar alta
para o bebê ir para casa.
Católicos falam abertamente
em "milagre" para se referir à
sobrevivência de Marcela de
Jesus, agora transformada em
símbolo da luta antiaborto.
No site de relacionamentos
Orkut, a comunidade "Força
Marcela Oramos por Vc", criada em 29 de novembro, já reúne
511 membros. Segue crescendo.
Um documentário sobre a vida do bebê e sua família está em
fase de produção, o câmera entrando e saindo do quarto do
hospital.
Todos os dias, rodas de orações são formadas na Santa Casa. Na terça-feira, ativistas da organização Santa Gianna Beretta Molla, sediada em Franca
e autodefinida como "a favor da
família, em defesa da vida", foram rezar o "Creio em Deus
Pai" com Cacilda e o diácono,
na presença do bebê.
Recorde esse nome: santa
Gianna, a santa antiaborto. Canonizada pelo papa João Paulo
2º em maio de 2004, seu exemplo foi ter-se recusado a fazer
um aborto quando, grávida, os
médicos lhe disseram que levar
a gestação a termo a mataria.
Conforme a previsão dos médicos, ela morreu ao dar à luz. A
criança viveu. Dois milagres
atribuídos a Gianna, garantiram-lhe a canonização, ambos
no Brasil, apesar de a santa ser
italiana (de Milão) e nunca ter
estado em vida por aqui.
Segundo o ginecologista e
obstetra Thomaz Rafael Gollop, professor da Universidade
de São Paulo, Marcela de Jesus
tem os hemisférios cerebrais
destruídos, um diagnóstico fechado de anencefalia e um
prognóstico certo: o da progressiva deterioração de seu organismo, até o perecimento.
Malformação com causas
multifatoriais, a anencefalia
atinge mais meninas do que
meninos e, explica o professor,
em 60% dos casos, relaciona-se
a uma dieta materna pobre em
ácido fólico durante o mês antecedente e posterior à concepção. "Infelizmente é um quadro irreversível", diz o docente.
O chefe do setor de neurologia infantil da Universidade Federal de São Paulo, o professor-adjunto Luiz Celso Vilanova,
explica que, na anencefalia,
uma parte do cérebro, o córtex
cerebral, responsável pelas
funções mentais superiores,
não chega a se formar.
"O que existe é o tronco cerebral", uma estrutura primitiva
que coordena reações a estímulos, batimentos cardíacos e respiração, entre outras funções.
"O bebê anencéfalo é incapaz
de sentir -para isso ele precisaria do córtex cerebral-, mas
ele é capaz de reagir a estímulos", explica o professor.
"Um bebê anencéfalo pode
ter, no máximo, reações reflexas, como aquelas típicas do estado vegetativo, sem traço de consciência. Emoções, sentimentos e pensamentos estão
fora do horizonte de um bebê
nessas condições", afirma.
Diretora da Anis, ONG que é
referência feminista em pesquisa sobre bioética, a antropóloga Debora Diniz tem assessorado várias mulheres grávidas
de fetos anencéfalos nos últimos anos.
Sobre Marcela de Jesus, Debora entende que não se pode
fazer da excepcionalidade do
caso uma norma que se imponha sobre as grávidas de fetos
anencéfalos. "Em um Estado
laico, é absurdo pretender que
todas as mulheres grávidas de
fetos anencéfalos passem a
acreditar em milagres."
"É à mãe que cabe decidir se
deve ou não prosseguir com a
gestação. Tanto seria errado
impor a interrupção da gravidez quanto seu contrário. O caso desse bebê só reforça a tese
de que se trata de uma decisão
que só cabe aos parentes e a
mais ninguém tomar", diz.
Na pequena Patrocínio Paulista, 14 mil habitantes, nos
contrafortes da serra da Canastra, quase divisa com Minas Gerais, existe o bairro Palmital, onde era a fazenda de mesmo
nome, centenária e agora loteada entre os herdeiros, todos parentes dos pais do bebê anencéfalo, que também moram lá.
A prima Nelsina Terezinha
Figueira de Freitas, 52, mora ao
lado da casa dos Ferreira, em
uma construção de taipa de pilão, curral anexo, no meio de
um cafezal. Vergada diante de
uma Nossa Senhora, a prima
conta o que viu na Santa Casa,
ao visitar Marcela de Jesus: "Eu
vi um anjo vestido de azul, uma
bênção. Ela sorria e soltava um
gorgonadinho, como se quisesse falar alguma coisa". É a fé.
Colaborou LUÍS FERNANDO MANZOLI , da Folha Ribeirão
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