São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2004

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As mãos que acertam os ponteiros da cidade

Lalo de Almeida/Folha Imagem
O relojoeiro Augusto Fiorelli faz manutenção na torre da Estação da Luz, no centro de SP


Responsáveis pela manutenção dos principais relógios de São Paulo herdaram ofício dos pais, mas pontualidade não é seu forte

CYNARA MENEZES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

LALO DE ALMEIDA
REPÓRTER FOTOGRÁFICO

Se São Paulo não pára, como se diz, então pode-se afirmar que são de Augusto Fiorelli, 44, e de Antonio Rodrigues de Lima, 61, as mãos ocultas que dão corda em sua engrenagem. Literalmente: a cada sete dias, eles sobem as escadarias que levam até alguns dos relógios mais famosos da cidade para garantir que continuem em movimento.
Para Fiorelli, são 141 os degraus que galga às terças-feiras até chegar à torre do relógio da Estação da Luz, ofício herdado do avô, também Augusto, hoje aposentado, que cuidou de seus ponteiros durante mais de 20 anos.
A máquina original, inglesa, réplica do londrino Big Ben e fabricada em 1890, derreteu no incêndio que atingiu toda a ala leste da estação, em 1946.
Era o mesmo modelo de relógio mecânico que ainda pode ser visto nas estações de Paranapiacaba e de Santos: os três chegaram juntos ao Brasil, trazidos pela então concessionária das ferrovias paulistas, a inglesa São Paulo Railway.
Desde que foi substituído, em 1950, o relógio da Estação da Luz só ficou parado no último ano, em virtude da reforma feita em suas instalações, e voltou a ser acionado na semana passada.
Como? Com a mão de Fiorelli girando a manivela. É preciso dar corda toda semana. Ouvidos atentos à batida, ele também observa se está atrasando ou adiantando e faz a regulagem. "Um relógio como esse não pode errar a hora, porque serve de guia para as pessoas", diz o relojoeiro. No total, cuida de 12 relógios que o paulistano está acostumado a ver em seu dia-a-dia.

O mais velho e o mais alto
Entre eles, o mais antigo é o da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, francês, de 1884. O maior é o do mosteiro de São Bento: o sino que bate a hora pesa cinco toneladas e meia. As torres mais altas são a do Liceu Coração de Jesus, nos Campos Elíseos, e a da Estação da Luz.
Com tantos ponteiros na cabeça, Fiorelli não se livra de ter pesadelos. "Uma vez sonhei que a torre do mosteiro de São Bento não tinha escada de acesso, e eu tinha de subir pelas paredes, como o Homem-Aranha, para chegar até o relógio", conta. Sem falar que muitas vezes não consegue conciliar o sono até que um problema seja solucionado.
Seu colega Antonio Rodrigues de Lima, responsável pelo relógio da estação Júlio Prestes, vive o contrário: muitas vezes encontra a saída para um reparo enquanto dorme.
Atualmente está fazendo a restauração do relógio da igreja Nossa Senhora do Brasil, no Jardim América, parado há dez anos, e não achava um jeito de resolver o problema da fiação, velha e danificada.

Preso na torre
"Em um sonho, veio a idéia de que precisava: abandonar a fiação antiga e fazer tudo novo", conta Rodrigues. "Ao acordar, tenho que anotar o que sonhei, senão esqueço", afirma.
Uma vez viveu um pesadelo acordado: ficou preso na torre da estação Júlio Prestes, onde não havia telefone, até o dia seguinte, quando os funcionários voltaram ao trabalho.
Artesão, é o próprio Rodrigues quem fabrica as peças para a restauração de relógios antigos, a maioria deles elétricos, como o da Júlio Prestes.
Foi ele quem recuperou e hoje faz a manutenção do relógio da estação de Paranapiacaba, que estava parado havia 11 anos e que voltou a funcionar em 2002. Também é um ofício herdado: o pai de Rodrigues já consertava relógios em Alagoas, sua terra natal, e agora é Rodrigues quem está ensinando o filho.
O relógio da Júlio Prestes, inglês, do qual cuida desde 1968, está atualmente com três de suas quatro faces em atividade, e Rodrigues promete que todas estarão funcionando no aniversário da cidade. Fabricado em 1935, é considerado moderno para a época, porque possui uma espécie de "cérebro" eletrônico que o comanda.
Antigamente, segundo o relojoeiro, o mecanismo também acionava os relógios menores de todas as estações de trem paulistas, até Maringá (PR).
"Se falta energia elétrica, esse cérebro continua trabalhando, guardando informação. Quando a energia volta, a hora certa é restabelecida. É por isso que, às vezes, as pessoas vêem de baixo os ponteiros girarem rapidamente", explica.
Na mudança de gestão do prédio da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) para a Secretaria de Cultura, no início da década de 1990, Rodrigues deixou por um tempo o relógio, que ficou sem funcionar durante dois anos, para dor do relojoeiro.
"Toda vez que o via, pensava: "meu relógio está parado"..." Como não foi encontrado alguém que conhecesse tão bem a máquina, acabou sendo chamado de volta.

No pulso, relógios baratos
Para surpresa de quem os conhece, os guardiões das horas paulistanas usam relógios baratos de pulso, a pilha.
Enquanto Fiorelli não dá importância a isso, Rodrigues garante ter o seu Mido -uma das mais famosas marcas do mundo- de ouro, automático, com 17 rubis na engrenagem, guardado em casa, para ocasiões especiais. E ensina que, mais que um Rolex, vale um Vacheron. "São relógios artesanais, encomendados por unidade, e não fabricados em série."
Em comum, os dois possuem uma característica paradoxal em quem acerta os ponteiros mais ilustres da cidade: não são muito pontuais.
Ambos pequenos, de passos apressados, à semelhança do coelho de "Alice no País das Maravilhas", chegam atrasados para a entrevista, de olho no relógio. "É tarde, é tarde, é tarde!", diria o roedor de Lewis Carroll.


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