|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GILBERTO DIMENSTEIN
Repetência é coisa de pobre
Repetência de aluno abastado é exceção; repetência de
aluno pobre é regra.
Basta ver a relação entre série e
idade para constatar que apenas
uma minoria -aliás, ínfima-
dos estudantes de maior poder
aquisitivo passa pela dolorosa experiência da reprovação, obrigados a ficar, humilhados, numa sala de aula com crianças ou adolescentes menores.
Se o presidente Lula tivesse o
cuidado de entender a razão dessa diferença escolar, provavelmente ficaria envergonhado de
sair atacando, como fez na quinta-feira, o sistema de ciclos do ensino fundamental -aliás, uma
idéia inovadora introduzida no
país pelo PT, mais precisamente
quando Luíza Erundina, assessorada por Paulo Freire, era prefeita de São Paulo. "Podemos estar
formando analfabetos dentro da
sala de aula", atacou Lula, referindo-se ao que chamou de um
"erro histórico".
Só não classifico essas críticas
apenas de desinformadas porque,
durante as eleições, o PT tinha em
mãos pesquisas de opinião que
mostravam que bater nesse assunto rende aplausos entre muitos pais e professores. Portanto, a
colocação do presidente é resultado de uma perigosa confluência
de marketing rasteiro com desconhecimento de educação.
Os mais ricos, senhor presidente, já são submetidos, em essência, à progressão automática.
É fácil entender.
Que acontece quando o estudante de uma escola de qualidade
apresenta problemas de aprendizado ou de comportamento? Os
pais são chamados pela coordenação pedagógica e informados,
em detalhes, sobre a vulnerabilidade de seu filho. Discute-se, então, o que fazer para tentar sanar
as deficiências.
Se a escola não consegue enfrentar as fragilidades do aluno,
recomendam-se professores particulares, psicólogos e psicopedagogos. Mesmo que tais recursos não
funcionem muito bem, o estudante, desde que demonstre algum
progresso, não é retido, na esperança de que, devidamente
apoiado, consiga prosperar, tapando lentamente os buracos.
Mas, quando, apesar de todos
os esforços, não há evolução, o
pior é evitado com uma discreta
sugestão para que o aluno mude
de escola -talvez em outro ambiente, com diferentes métodos e
novos ares, ele venha a encontrar
estímulos.
Tanta cautela é tomada pelo
simples motivo de que a repetência é, na imensa maioria das vezes, um trauma absolutamente
antieducativo. Abate a auto-estima; é uma trava na relação do indivíduo com o aprendizado.
Quando se trouxe para o país o
sistema de ciclos, o que se pretendeu foi dar aos mais pobres os
mesmos benefícios assegurados
aos mais ricos -o de não serem
massacrados psicologicamente.
Depois de tanto ser reprovado, o
estudante sentia-se burro e, envergonhado, ia para a rua e entrava no círculo vicioso da marginalidade. Esses jovens são candidatos a engrossar estatísticas como as divulgadas na semana passada pelo IBGE, segundo as quais,
em 20 anos, 600 mil pessoas foram assassinadas.
O sistema de ciclos, ao contrário do que muitos pensam, exige
uma avaliação ainda mais rigorosa e atenta; os testes devem ser
analisados e as reparações devem
ser feitas imediatamente. Os educadores devem melhorar para
que o aluno também melhore. E
aqui está o problema: a regra são
as deficiências, ou seja, salas
cheias, professores com baixos salários, pouca qualificação e pesadas cargas horárias, laboratórios
e bibliotecas defasados. Em muitos lugares, violência.
O professor é massacrado e vê
na ameaça da repetência um mecanismo disciplinar. É a vítima
fazendo vítimas.
Sem bons diretores, não existem
boas escolas. O bom gestor é um
empreendedor social, capaz de
motivar os professores, a família e
a comunidade, estabelecendo
parcerias. Não há programas de
qualidade para a formação de diretores que os tornem habilitados
a lidar com os desafios da educação contemporânea.
Algumas experiências estão
em andamento, como as que
ocorrem em São Paulo e em Santa
Catarina, financiadas por uma
fundação privada, para a formação mais ampla de diretores; o
projeto é comandado pela ex-secretária da educação de São Paulo Rose Neubauer. Por enquanto,
ainda é um projeto piloto.
Em São Paulo, começaram, neste mês, conversas para que universidades estaduais criem um
curso inovador para dirigentes escolares, com um currículo feito
por pedagogos e especialistas em
tecnologia comunitária e em empreendedorismo. O ministro Tarso Genro disse a esta coluna que
vai apoiar a idéia. Ainda são, porém, conversas.
Sem diretores preparados, esqueça: não existe educação que
prospere. É como imaginar que
uma empresa possa sobreviver
sem um executivo qualificado.
Para usar uma metáfora ao estilo
de Lula, se o técnico for ruim, os
jogadores, por melhores que sejam, vão se embolar no campo.
A repetência é o sinal trocado.
Invertem-se as responsabilidades.
O problema não é do sistema que
não educa direto, mas do aluno
que não aprende. Essa visão é
inútil -afinal, repetir não significa aprender, pelo contrário- e,
sobretudo, perversa: a vítima da
escola ruim torna-se vilão de seu
fracasso.
PS - Ainda prefiro o aluno que
não aprende e fica na escola
àquele que repete e vai para a
rua. Aquele que fica na escola
ainda tem alguma esperança de
salvação. Aquele que vai para a
rua é candidato a engrossar as estatísticas do IBGE sobre assassinatos.
E-mail - gdimen@uol.com.br
Texto Anterior: Ambiente: No país, água adicionada de sais é produzida em outros três locais Próximo Texto: Ator Marcello Anthony, da Globo, é detido ao comprar maconha no RS Índice
|