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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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FIM DE UM CICLO

Após 40 anos, aumento do IPTU e do aluguel força proprietárias a encerrar as atividades na Peixoto Gomide

Kinkon, o chinês mais antigo de SP, fecha as portas

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

Tudo se deu à maneira zen. No domingo passado, Dia das Mães, após servir as habituais porções de frango xadrez e rolinhos primavera, o Kinkon encerrou com discrição, "sem balulho", uma história de quatro décadas.
Era o mais antigo restaurante chinês de São Paulo e deixou de funcionar não por falta de fregueses. "IPTU, muito alto. Aluguel, caríssimo. Difícil continuar. Coração da gente fica partido, mas...", lamenta Rita Doong Santos, 62, uma das sócias da casa.
No Brasil desde 1953, a comerciante ainda se atrapalha com o português e, às vezes, engole uns verbos ou troca graciosamente o "r" pelo "l". "Vida assim: coisas terminam."
A dicção peculiar de Rita, ora latina, ora oriental, espelha, sem querer, a filosofia do Kinkon. Fundado em 1960, o estabelecimento sempre procurou transitar entre dois mundos. Adaptou pratos da China às características daqui. E transmitiu longínquos segredos culinários para um punhado de cozinheiros gaúchos, baianos, cearenses, mineiros.
De tal modo que, hoje, inúmeros restaurantes chineses da cidade carregam algo do Kinkon. Trazem, no cardápio, iguarias que surgiram ali -e, não raro, também exibem, à frente do fogão, profissionais que frequentaram as panelas do veterano.
Falar em Kinkon significa mencionar, indiretamente, o extinto Sino-Brasileiro. A história de ambos se confunde. O precursor, de fato, é o Sino. Nasceu em 1954, no bairro de Perdizes, como desdobramento de uma pensão que só abrigava imigrantes. Fez tamanho sucesso que os donos, oriundos de Xangai, criaram o Kinkon.
A filial se localizava na avenida Paulista. Em 1975, porém, se transferiu para uma rua próxima, a Peixoto Gomide, onde permaneceu até fechar. Ocupava, naquele endereço, um sobrado com três salas, que podia reunir 200 clientes de uma única vez.
O Sino e o Kinkon compartilhavam o menu e o jeito de trabalhar. "Quando os abrimos", recorda-se Betty Ong, 84, outra das proprietárias, "não havia nada semelhante em São Paulo. Existia apenas um restaurante do gênero no centro, pequenininho e bem simples. Durou pouco."
Logo que apareceu, o Sino atraía quase que exclusivamente os estrangeiros. "Pessoal do Brasil passava longe", conta Betty. "Confundiam cozinha da China com cozinha japonesa. Pensavam que teriam de sentar no chão e comer peixe cru. Morriam de medo." A resistência diminuiu por força de empresários chineses que investiam no país. Interessados em difundir a cultura natal, resolveram "adotar" o restaurante.
Começaram, então, a convidar executivos locais para almoços e jantares de negócio no Sino. "Foi um estouro", descreve Betty. "Preparávamos banquetes deliciosos, e brasileiros aplaudiam." Conforme a clientela paulistana aumentava, a casa ia suavizando o cardápio e o tornando mais compatível com o paladar nacional.
Tome-se o exemplo do rolinho primavera. Tradicionalmente, levava carne de porco, broto de bambu e acelga. O Sino manteve tal versão, mas inventou uma nova, que o Kinkon também adotou e que se disseminou. "Substituímos a carne suína pela de vaca e a acelga pelo repolho", explica Rita.
Na esperança de ajudar outros conterrâneos, Betty sugeriu transformar os dois restaurantes em uma espécie de escola, que arregimentaria aprendizes e os ensinaria a cozinhar. "Sofri quando vim para cá, em 1950. Caí doente -saudade imensa da China. O Sino e o Kinkon me encheram de alegria. Por isso, quis dividir felicidade. Garantir um ofício àqueles que acabavam de chegar."
A escola informal prosperou e lapidou aproximadamente 200 "alunos" . De início, recebia apenas chineses. Depois, o leque se ampliou.

Ciclo
Em 1994, o Sino cerrou as portas. O Kinkon -"pote de ouro", no dialeto de Xangai- seguiu adiante, oferecendo uma variedade de 109 pratos. Alguns conservaram-se muitíssimo exóticos, como a salada de água viva e a sopa de barbatana de tubarão.
Nos tempos áureos, a casa possuía 30 funcionários. Ultimamente, contabilizava oito, incluindo o chefe de cozinha, paraibano.
Em 2002, o IPTU do sobrado na Peixoto Gomide saltou de R$ 9 mil para R$ 18 mil. Este ano, inchou mais um tanto: R$ 20 mil. "O aluguel quase dobrou. O dólar, elevado, encareceu as diversas matérias-primas que importamos. Se subíssemos preço dos pratos, fregueses iriam sofrer", argumenta Rita. "Melhor parar. Estamos todos cansados." Os proprietários tentam, agora, vender o nome do estabelecimento.
"Não gosto de pensar que acabou. Péssimo. Péssimo", diz a professora Christine Yufon, natural de Pequim e assídua cliente do restaurante. "Prefiro raciocinar como budistas -é só um ciclo que se completa. Só um ciclo. Outros irão começar."


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