São Paulo, quinta-feira, 18 de maio de 2006

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GUERRA URBANA /VÍTIMAS

Horas depois da morte de soldado, cinco rapazes foram assassinados; BO relatado por policial militar aponta autoria desconhecida

Testemunhas de chacina acusam policiais

LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

MARLENE BERGAMO
REPÓRTER-FOTOGRÁFICA

As cinco carteiras de trabalho levadas pelos familiares e colocadas lado a lado sobre a mesa do delegado do 55º Distrito Policial provavam: tratava-se de trabalhadores. Segundo 13 testemunhas ouvidas ontem pela Folha, os cinco proprietários das carteiras foram caindo mortos em uma esquina de São Mateus, zona leste da cidade, uns sobre os outros, depois de alvejados por tiros de pistola. "Os assassinos eram policiais. Com certeza", disse um rapaz, apoiado pelos demais.
"Aqui, no domingo à noite, tinha uma montanha de corpos", contou J.S., que escapou da chacina por um triz. Minutos antes das 19h30, hora do crime, ele deixara os amigos reunidos e se afastara apenas para levar a moto para casa. Foi quando os três assassinos subiram a pé a ladeira da rua São José e encontraram a turma de jovens. Veio a ordem: "Mão na cabeça", e então os tiros -direto nas cabeças.
Consumado o crime, os três fizeram o caminho de volta calmamente. "Um deles ainda voltou, bem devagar, para conferir se todos estavam mortos e deu tiros de xeque-mate", contou uma testemunha, referindo-se a uma última bateria de disparos contra os corpos empilhados.
Na hora do crime, a igreja do Evangelho Quadrangular, vizinha à cena, estava lotada. O bar, aberto. A rua, cheia. Quando recuperaram o fôlego, os moradores que estavam em volta conseguiram escutar, por debaixo da pilha de corpos, um pedido minúsculo de socorro: "Me tira daqui, me tira daqui." Era M.A.S.
Sexto homem do grupo que, na hora do crime, estava conversando na esquina, M.A.S fingiu-se de morto até se certificar de que os assassinos já se tinham retirado.
Menos de 10 minutos depois do crime, um veículo da polícia militar parou no local. Logo, vieram outros -o M-38203, o M-38302, os carros da Força Tática prefixos 38020 e 30011.
Sem esperar pela perícia, os PMs começaram a recolher as cápsulas espalhadas no local da chacina. Também iniciaram a remoção dos corpos de Fernando da Silva Rodella, 29; Robson de Souza, 21; Ivan Ramos Ferreira de Moura, 23; Edilson Pedro de Souza, 29; Danilo Lopes Rissi, 21.
"Foram colocados em duas viaturas, jogados como cachorros. Quando iam jogar o Ivan, o último, mais gordinho do que os outros, o corpo escorregou e caiu no chão", lembra uma testemunha, reconstituindo o diálogo que disse ter ouvido, na seqüência, entre um soldado e seu superior.
"E esse aqui, a gente põe onde?", perguntou o soldado. "Joga essa merda aí em cima, com os outros", teria respondido o superior, apontando um dos veículos.
Os moradores de São Mateus estranharam a rapidez com que a polícia se apresentou no local, a presteza com que promoveu a remoção dos corpos e até mesmo a lavagem da calçada, que estava encharcada de sangue.
Ignorando a atuação dos PMs, o boletim de ocorrência nº 1.643 diz apenas que: "a autoridade policial compareceu ao local, não sendo possível obter qualquer informação sobre a autoria do delito ora investigado, bem como constatou que o local encontrava-se prejudicado para perícia".
Esse boletim, os familiares encontraram pronto na delegacia, quando chegaram para registrar o crime e contar o que sabiam. Não puderam. O delegado Fabio Bonini Ferrão limitou-se a entregar-lhes cópia do documento produzido a partir de relato de um policial, Luciano Rosa Ferreira, que aponta "autoria desconhecida" para as mortes.

Vingança
Naquela manhã, às 11h, o policial militar José de Souza, 48, tinha sido assassinado a menos de 600 metros do local da chacina. O corpo do soldado só foi removido às 16h -cinco horas depois. Os colegas de farda do PM morto providenciaram a preservação do local, isolando-o para o trabalho da perícia, que chegou às 18h.
O bairro ficou durante todo esse tempo mobilizado pela tragédia do PM. Assim que se encerraram os trabalhos relativos a ela, aconteceu a chacina dos cinco rapazes.
Familiares das vítimas ouvidos pela Folha acreditam que os jovens foram atingidos pela "sede de vingança dos policiais". "Queriam vingar o colega morto pela manhã e acertaram as pessoas erradas à noite", acusa o pai de um assassinado.
E se os matadores fossem bandidos comuns? Um comerciante reage: "Não pode ser. A gente conhece bem bandido nessa região. Bandido não mata desse jeito. Não manda pôr a mão na cabeça para depois atirar. Atira e sai correndo. Não sai com essa calma toda. Andando. Não volta pra conferir o serviço".

Peladas
Os cinco amigos de São Mateus se conheciam desde crianças. O bairro era, então, um imenso matagal. Companheiros de peladas, sempre se reuniam para conversar sobre mulher e futebol. "Se alguém me dissesse que eles tinham morrido por causa de uma briga entre torcedores, eu até entenderia. Mas não uma morte assim", diz a prima de um deles.
Ivan era metalúrgico; Danilo ia começar a trabalhar na próxima segunda-feira no Habib's de Santo André; Fernando era mecânico de automóveis; Robson e Edilson eram metalúrgicos na JED (empresa de metais sanitários). Segundo a Secretaria da Segurança, os jovens, todos negros, não tinham antecedentes criminais.
"Foi uma surpresa geral a morte dos garotos", disse um gerente da JED que trabalhou com Robson e Edilson. "Eles eram muito queridos, tanto que a empresa alugou vans para levar os funcionários ao enterro e encerrou o expediente duas horas mais cedo." Mais de 2.000 pessoas foram se despedir dos rapazes.
M.A.S foi internado no hospital municipal de São Mateus. Único sobrevivente da chacina, a família dele teme que os assassinos dos outros tentem completar o serviço e já providenciaram sua remoção para outro hospital.
Segundo a Secretaria da Segurança Pública, as famílias devem levar suas suspeitas em relação ao caso à ouvidoria das polícias Civil e Militar.


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