São Paulo, Segunda-feira, 18 de Outubro de 1999
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COTIDIANO IMAGINÁRIO
A mão fraudulenta

MOACYR SCLIAR

 "Transplantado é acusado de fraude. O neozelandês Clint Hallam, que entrou para a história da medicina no ano passado ao receber o primeiro transplante de mão, está sob investigação policial. Ele teria utilizado, na França, o cartão de crédito de um amigo para pagar contas de hotel e telefone, além de desviar dinheiro."Mundo, 12.out.99

Interrogado pela polícia, Clint Hallam a princípio negou tudo. Depois foi forçado a admitir; tinha, sim, cometido os atos fraudulentos de que é acusado. Mas acrescentou, em sua defesa, que isso acontece pela primeira vez. No passado, afirmou, eu era escrupulosamente honesto; jamais me ocorreria enganar a quem quer que seja.
Sustentou que essa mudança de conduta verificou-se depois da operação a que foi submetido. Esta mão, bradou, esta mão que não era minha e que me foi transplantada, esta mão alterou a minha vida.
Clint Hallam jura que a mão age como se tivesse vida própria. Foi a mão que se apoderou do cartão de crédito do amigo. Foi a mão que estendeu, ao encarregado do hotel, o dito cartão. Foi a mão que se apossou do dinheiro de outros.
Conta Clint Hallam que, a princípio, ficou surpreso com o que estava acontecendo. Logo, desesperado, chegou a pensar numa medida extrema, baseada no dito bíblico: "Se tua mão te ofender, corta-a a e arroja-a de ti".
Só não o fez porque, tendo passado para a história da medicina como a primeira pessoa a receber uma mão transplantada, não quis decepcionar os dedicados médicos que o operaram.
Está convencido, porém, de que a mão transplantada trouxe consigo a sua própria carga de maldade, de malícia. E pergunta-se qual terá sido o seu passado, o passado do doador.
Ouviu falar que, no Brasil, um homem cortou a própria mão para enganar o seguro. Tem a certeza de que foi uma mão desse tipo que ele recebeu. Mãos fraudulentas, sabe-se, são capazes de atravessar o oceano para dar continuidade à sua carreira de transgressões.


O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna às segundas-feiras um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal


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