São Paulo, segunda-feira, 18 de outubro de 2004

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SOCIEDADE INVOLUNTÁRIA

Empresa endividada, que pertencia ao maior grupo de ônibus de SP, foi registrada em nome de terceiros

Laranja herda dívida de barão do transporte

GILMAR PENTEADO
ALENCAR IZIDORO
DA REPORTAGEM LOCAL

O oficial de Justiça chegou de repente, pronto para cumprir a ordem de penhora. "Só se levá-los. Eles são os únicos bens que eu tenho", respondeu o vigilante e ex-cobrador de ônibus Gerson Antonio de Lucena, 37. Eles, segundo Lucena, eram sua mulher e quatro filhos, todos apertados na casa de um único cômodo, na periferia de São Paulo. Perplexo, o oficial foi embora sem penhorar nada.
Oficialmente dono da Auto Viação Tabu Ltda., uma empresa de ônibus cheia de dívidas, e perseguido por uma caravana de oficiais de Justiça, Lucena é só um dos "laranjas" involuntários que, conforme avaliação do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e de uma juíza federal, foram utilizados pelo grupo do empresário José Ruas Vaz e seus sócios.
Líder disparado no setor de transporte coletivo de São Paulo, Ruas Vaz domina mais de metade dos ônibus urbanos que circulam na capital paulista -tendo ganhado espaço na última concorrência do setor, concluída pela administração Marta Suplicy (PT) em julho de 2003.
A Tabu, que prestou serviços para a Prefeitura de São Paulo de 1985 a 1996, pertencia de forma declarada ao grupo Ruas Vaz até 19 de dezembro de 1996. Depois disso, os sócios se retiraram, e os "laranjas" entraram em ação.
Das quatro pessoas que aparecem como sócios da Tabu de 1996 a 2001, três foram localizadas pela Folha, apesar de os endereços informados na alteração contratual feita na Jucesp (Junta Comercial do Estado de São Paulo) estarem incorretos. Lucena e mais dois homens, que trabalham como sapateiros, negam envolvimento com a empresa de ônibus e afirmam que tiveram seus nomes usados sem que soubessem de nada. Nenhum tem ou já teve rendimentos suficientes nem mesmo para declarar Imposto de Renda.

Fraude
A estratégia do grupo Ruas Vaz para se livrar das dívidas da Tabu foi considerada fraudulenta por uma juíza federal de São Paulo, pelo INSS e por ações da PAJ (Procuradoria de Assistência Judiciária), órgão estadual que atende pessoas de baixa renda.
"Pelos documentos carreados nos autos, percebe-se que os sócios admitidos no quadro da primeira executada [a Tabu] consubstanciam-se em laranjas, ou seja, terceiros colocados na sociedade de maneira figurativa com o objetivo de os reais controladores da empresa furtarem-se de suas responsabilidades fiscais", escreveu a juíza Luciane Aparecida Fernandes Ramos, em agosto de 2003, em uma ação que tramita na 4ª Vara Federal de São Paulo e na qual o INSS tenta cobrar o pagamento de dívidas da Tabu.
A juíza desconsiderou a alteração contratual de 1996, na qual o grupo Ruas Vaz se retirou da sociedade. Nessa ação, o INSS afirma que houve uma fraude na qual foi usada uma prática comum de esvaziamento de empresa "quando a dívida está em patamar elevado". Somente para o INSS, a Tabu deve R$ 36,8 milhões.
A apuração da Folha em juntas comerciais de São Paulo e do Rio, a checagem de endereços informados pela viação em quatro Estados (SP, RJ, MG e ES) e o depoimento de três "laranjas" revelam uma rede de irregularidades.
De 12 endereços checados -cinco de sedes e filiais e sete de sócios-, apenas um é verdadeiro. É o local onde a Tabu operou até 1998, na zona leste de São Paulo, quando sua sede passou a migrar de endereço até desaparecer.
Em dezembro de 1998, registro na Jucesp aponta a criação de uma filial em São Paulo e a mudança da sede para Angra dos Reis (RJ). Em 2000, a sede foi para Itapeva (MG). Em 2002, nova mudança, para Ibitirama (ES). Os endereços não conferem. Moradores e comerciantes afirmaram à Folha nunca terem visto a Tabu funcionar nesses locais.
A análise nas juntas comerciais também mostrou o uso sistemático de "laranjas" a cada dois anos para despistar a Justiça, dificultando a localização de bens para penhora e a responsabilização dos donos. Em 1996, o grupo Ruas Vaz se retirou da viação Tabu, ao mesmo tempo em que foram admitidos como sócios dois sapateiros: José Simões e Gilson Nascimento de Oliveira.
O nome de Lucena surge na ficha cadastral da Tabu na Jucesp em 31 de março de 1998. José Admilson da Silva Santos, outro novo sócio da empresa, não foi encontrado pela reportagem. O CPF que foi registrado como sendo dele na alteração contratual da viação nem sequer existe.

Desabafo
Dos "laranjas", Lucena recebeu o maior número de cobranças. Seu endereço verdadeiro -o informado à Jucesp era falso- foi descoberto em 1999 pela Receita Federal, o que deflagrou a sua procura por uma caravana de oficiais de Justiça. Oliveira nunca foi citado e Simões só recebeu a primeira intimação há quatro meses.
Segundo Lucena, as citações somam R$ 600 mil. São dívidas fiscais, trabalhistas, por acidentes de trânsito, multas por dano ao meio ambiente provocado pela fumaça dos ônibus e até pela derrubada de postes de luz por veículos de sua suposta empresa.
Para mudanças contratuais, são necessárias cópias da identidade e do CPF. Não é exigido o reconhecimento de firma das assinaturas. Lucena não perdeu seus documentos. Entre 1985 e 1987, dez anos antes de ser incluído na Tabu, trabalhou como cobrador na Auto Ônibus Penha São Miguel Ltda., empresa da qual José Ruas Vaz era sócio até janeiro de 2003 -e que foi transferida para uma off-shore (empresa cujo dono não pode ser identificado publicamente) de Montevidéu, no Uruguai, conhecido paraíso fiscal.
"Você vê as portas se fecharem e seu nome usado por aí. Se você não tem uma estrutura psicológica boa, enlouquece e acaba fazendo besteira", afirma Lucena, que não consegue emprego fixo desde que teve seu CPF cancelado e seu nome incluído no SPC e na Serasa por causa das dívidas da Tabu.


Colaborou a Sucursal do Rio


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