|
Próximo Texto | Índice
SOCIEDADE INVOLUNTÁRIA
Empresa endividada, que pertencia ao maior grupo de ônibus de SP, foi registrada em nome de terceiros
Laranja herda dívida de barão do transporte
GILMAR PENTEADO
ALENCAR IZIDORO
DA REPORTAGEM LOCAL
O oficial de Justiça chegou de repente, pronto para cumprir a ordem de penhora. "Só se levá-los.
Eles são os únicos bens que eu tenho", respondeu o vigilante e ex-cobrador de ônibus Gerson Antonio de Lucena, 37. Eles, segundo
Lucena, eram sua mulher e quatro
filhos, todos apertados na casa de
um único cômodo, na periferia de
São Paulo. Perplexo, o oficial foi
embora sem penhorar nada.
Oficialmente dono da Auto Viação Tabu Ltda., uma empresa de
ônibus cheia de dívidas, e perseguido por uma caravana de oficiais de Justiça, Lucena é só um
dos "laranjas" involuntários que,
conforme avaliação do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social)
e de uma juíza federal, foram utilizados pelo grupo do empresário
José Ruas Vaz e seus sócios.
Líder disparado no setor de
transporte coletivo de São Paulo,
Ruas Vaz domina mais de metade
dos ônibus urbanos que circulam
na capital paulista -tendo ganhado espaço na última concorrência do setor, concluída pela administração Marta Suplicy (PT)
em julho de 2003.
A Tabu, que prestou serviços
para a Prefeitura de São Paulo de
1985 a 1996, pertencia de forma
declarada ao grupo Ruas Vaz até
19 de dezembro de 1996. Depois
disso, os sócios se retiraram, e os
"laranjas" entraram em ação.
Das quatro pessoas que aparecem como sócios da Tabu de 1996
a 2001, três foram localizadas pela
Folha, apesar de os endereços informados na alteração contratual
feita na Jucesp (Junta Comercial
do Estado de São Paulo) estarem
incorretos. Lucena e mais dois homens, que trabalham como sapateiros, negam envolvimento com
a empresa de ônibus e afirmam
que tiveram seus nomes usados
sem que soubessem de nada. Nenhum tem ou já teve rendimentos
suficientes nem mesmo para declarar Imposto de Renda.
Fraude
A estratégia do grupo Ruas Vaz
para se livrar das dívidas da Tabu
foi considerada fraudulenta por
uma juíza federal de São Paulo,
pelo INSS e por ações da PAJ
(Procuradoria de Assistência Judiciária), órgão estadual que atende pessoas de baixa renda.
"Pelos documentos carreados
nos autos, percebe-se que os sócios admitidos no quadro da primeira executada [a Tabu] consubstanciam-se em laranjas, ou
seja, terceiros colocados na sociedade de maneira figurativa com o
objetivo de os reais controladores
da empresa furtarem-se de suas
responsabilidades fiscais", escreveu a juíza Luciane Aparecida
Fernandes Ramos, em agosto de
2003, em uma ação que tramita na
4ª Vara Federal de São Paulo e na
qual o INSS tenta cobrar o pagamento de dívidas da Tabu.
A juíza desconsiderou a alteração contratual de 1996, na qual o
grupo Ruas Vaz se retirou da sociedade. Nessa ação, o INSS afirma que houve uma fraude na qual
foi usada uma prática comum de
esvaziamento de empresa "quando a dívida está em patamar elevado". Somente para o INSS, a
Tabu deve R$ 36,8 milhões.
A apuração da Folha em juntas
comerciais de São Paulo e do Rio,
a checagem de endereços informados pela viação em quatro Estados (SP, RJ, MG e ES) e o depoimento de três "laranjas" revelam
uma rede de irregularidades.
De 12 endereços checados
-cinco de sedes e filiais e sete de
sócios-, apenas um é verdadeiro. É o local onde a Tabu operou
até 1998, na zona leste de São Paulo, quando sua sede passou a migrar de endereço até desaparecer.
Em dezembro de 1998, registro
na Jucesp aponta a criação de
uma filial em São Paulo e a mudança da sede para Angra dos
Reis (RJ). Em 2000, a sede foi para
Itapeva (MG). Em 2002, nova mudança, para Ibitirama (ES). Os endereços não conferem. Moradores e comerciantes afirmaram à
Folha nunca terem visto a Tabu
funcionar nesses locais.
A análise nas juntas comerciais
também mostrou o uso sistemático de "laranjas" a cada dois anos
para despistar a Justiça, dificultando a localização de bens para
penhora e a responsabilização
dos donos. Em 1996, o grupo Ruas
Vaz se retirou da viação Tabu, ao
mesmo tempo em que foram admitidos como sócios dois sapateiros: José Simões e Gilson Nascimento de Oliveira.
O nome de Lucena surge na ficha cadastral da Tabu na Jucesp
em 31 de março de 1998. José Admilson da Silva Santos, outro novo sócio da empresa, não foi encontrado pela reportagem. O CPF
que foi registrado como sendo dele na alteração contratual da viação nem sequer existe.
Desabafo
Dos "laranjas", Lucena recebeu
o maior número de cobranças.
Seu endereço verdadeiro -o informado à Jucesp era falso- foi
descoberto em 1999 pela Receita
Federal, o que deflagrou a sua
procura por uma caravana de oficiais de Justiça. Oliveira nunca foi
citado e Simões só recebeu a primeira intimação há quatro meses.
Segundo Lucena, as citações somam R$ 600 mil. São dívidas fiscais, trabalhistas, por acidentes de
trânsito, multas por dano ao meio
ambiente provocado pela fumaça
dos ônibus e até pela derrubada
de postes de luz por veículos de
sua suposta empresa.
Para mudanças contratuais, são
necessárias cópias da identidade e
do CPF. Não é exigido o reconhecimento de firma das assinaturas.
Lucena não perdeu seus documentos. Entre 1985 e 1987, dez
anos antes de ser incluído na Tabu, trabalhou como cobrador na
Auto Ônibus Penha São Miguel
Ltda., empresa da qual José Ruas
Vaz era sócio até janeiro de 2003
-e que foi transferida para uma
off-shore (empresa cujo dono não
pode ser identificado publicamente) de Montevidéu, no Uruguai, conhecido paraíso fiscal.
"Você vê as portas se fecharem e
seu nome usado por aí. Se você
não tem uma estrutura psicológica boa, enlouquece e acaba fazendo besteira", afirma Lucena, que
não consegue emprego fixo desde
que teve seu CPF cancelado e seu
nome incluído no SPC e na Serasa
por causa das dívidas da Tabu.
Colaborou a Sucursal do Rio
Próximo Texto: Outro lado: Advogado diz que só apresentará defesa à Justiça Índice
|