São Paulo, Quinta-feira, 18 de Novembro de 1999
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INCULTA & BELA

"Sua vida não vale uma dose"

PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha

Está numa placa, na rodovia Washington Luís, perto de uma das entradas da querida cidade de Araraquara: "Sua vida não vale uma dose". É claro que se entende a intenção de quem escreveu a frase. A idéia certamente era dizer que não vale a pena arriscar a vida por uma dose, mas, como diz o ditado, de boas intenções o inferno está cheio. A frase é, no mínimo, engraçada. Quando vi a placa pela primeira vez (há um bom tempo), lembrei-me de João Cabral: "É a parte que te cabe deste latifúndio". Será que nem isso valho? Eta vidinha insignificante! A primeira fase do vestibular da Fuvest está aí. Um assunto comum é justamente a ambiguidade (duplo sentido). Vale a pena discutir outros casos. Veja este, da prova de 97: "Rossi pede ao STF processo por calúnia contra Motta". O que se conclui? Rossi e Motta são aliados ou inimigos? O problema, mais uma vez, está na estruturação da frase. A expressão "contra Motta" pode ser ligada a "calúnia" ou a "processo". Em suma, pode-se entender que: a) Rossi, aliado de Motta, pede ao STF que processe quem caluniou Motta; b) Rossi, inimigo de Motta, pede ao STF que processe Motta por calúnia -calúnia contra o próprio Rossi, é claro. Veja outro caso da mesma prova: "Casal procura filho sequestrado via Internet". E agora? Já se sequestra pela Internet? O pior é que já. Essas frases parecem tiradas de títulos de jornais, território mais do que fértil. Os jornalistas adotam o lema "Título bom é o que cabe". Por conhecer a mecânica de produção de um jornal, cabe-me defender meus queridos amigos jornalistas. Não é nada fácil fazer títulos, sobretudo quando o chefe grita, o texto acaba de chegar e faltam cinco minutos para o fechamento. Dê-lhes um desconto, por favor. Quanto a você, candidato a uma vaga no ensino superior, saiba que se exige cada vez mais a percepção da ambiguidade nas provas de português. Leve em conta a estrutura da frase e dê atenção especial aos elementos de conexão (preposições, conjunções e pronomes relativos). Pode estar aí a chave da clareza. No caso da frase que envolve Rossi e Motta, a preposição "contra", que introduz o elemento que funciona como alvo, casa-se semântica e sintaticamente com as palavras "processo" e "calúnia". É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail: inculta@uol.com.br


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