São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2001

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INCLUSÃO DIGITAL

Estudante de computação, Aparecido do Carmo deixará de cortar cana para trabalhar como programador

Bóia-fria troca canavial por computador

RICARDO KOTSCHO
ENVIADO ESPECIAL A SERTÃOZINHO

Não foi fácil. Para mudar de vida, há três anos ele enfrenta uma inacreditável romaria de pelo menos 19 horas diárias entre sua casa, o trabalho e a faculdade.
Acorda ainda no escuro, às 5h. Só volta para casa após a meia-noite, ao final de uma maratona de uns 150 quilômetros sacolejando em ônibus no trajeto entre a casa, em Barrinha, a lavoura de cana-de-açúcar, em Sertãozinho, e o curso de ciências da computação do Centro Universitário Barão de Mauá, em Ribeirão Preto.
"Mas tá bom", repete a todo momento o bóia-fria Aparecido do Carmo, 39, casado, três filhos, que a partir de amanhã vai finalmente realizar o grande sonho da sua vida: trocar o podão (foice) do corte de cana por um computador do centro de processamento de dados da Companhia Energética Santa Elisa, em Sertãozinho.
Filho e neto de trabalhadores rurais, Aparecido nasceu numa usina de açúcar em Pradópolis e começou a trabalhar como bóia-fria com 13 anos.
No fim de outubro, quando a Santa Elisa abriu duas vagas de programador de sistemas, Rosmary Delboni Ortolan, gerente de recursos humanos, lembrou-se logo do bóia-fria que voltara a estudar quase 20 anos depois de concluir o segundo grau.
Neste meio tempo, prestou concurso para oficial de justiça, funcionário dos Correios e técnico do Tesouro Nacional. "Meu objetivo era ter uma renda melhor para poder fazer uma faculdade."
Chegou a ser aprovado no vestibular de direito da Unaerp, uma das boas universidades particulares de Ribeirão Preto, mas não pôde nem pagar a matrícula.

Desemprego
Em 1997, quando houve a fusão da Usina São Geraldo, onde ele trabalhava havia 15 anos, com a Usina Santa Elisa, Aparecido foi demitido. A esta altura, já era apontador do setor de motomecanização e estava fascinado com os computadores que descobriu nos escritórios da usina.
Depois de alguns meses desempregado, voltou para a vida de bóia-fria, já na Santa Elisa, mas não desistiu do sonho.
No ano seguinte, estudando por conta própria, foi aprovado no vestibular da Barão de Mauá.
Com o salário em torno de R$ 600 por mês que ganhava até maio para cortar 12 toneladas de cana por dia, Aparecido só está no terceiro ano do curso de ciências da computação porque conseguiu uma bolsa de estudos integral da empresa. A mensalidade da faculdade é de R$ 480.
Outros 200 dos 3.600 empregados da Santa Elisa que cursam faculdade recebem bolsas de 50% da mensalidade. Apenas dez ganham bolsa integral.
"Aqui ninguém deixa de estudar porque não pode pagar a escola", diz a gerente Rosmary Ortolan. Em 1997, a Santa Elisa erradicou o analfabetismo no setor industrial e, no ano passado, entre os trabalhadores rurais.
Qualificar mão-de-obra é desafio permanente na região, onde a mecanização da lavoura é cada vez maior. Em dez anos, metade de um exército de 60 mil bóias-frias foi trocado por máquinas.
"Precisamos dar a mesma oportunidade que demos ao Aparecido para todos. Não é questão de ser bonzinho, é ser inteligente. Só gente feliz produz bem. Este é um pensamento bem capitalista".
Rosmary dá números para justificar a sua tese: em cinco anos, a produtividade por homem/dia cresceu de 7,5 toneladas para 12,6 toneladas e o índice de absenteísmo caiu de 18% para 5,45%.
A preocupação dela agora é outra: cuidar da adaptação de Aparecido às suas novas funções. "É a primeira vez na empresa que temos uma mudança tão drástica de um funcionário que sai direto do podão do corte de cana para uma sala de computação. Gostaria que ele não fosse tratado como um diferente."
De uma hora para outra, o salário dele vai quase dobrar. Passa dos R$ 700 que ganhava como líder de turma na lavoura para R$ 1.300 como trainee de programador de sistemas.
Para tornar a transição menos traumática, Aparecido terá apoio de psicóloga e fonoaudióloga (precisa aprender a modular a voz porque na lavoura fala-se sempre muito alto), além de orientações sobre a forma correta de se vestir no novo ambiente de trabalho.
Na última semana, ele já estava passando o trabalho de líder da turma 15, que vinha exercendo desde junho, para seu substituto, enquanto fazia exames médicos e conhecia seus novos colegas.
Foi tudo muito rápido. Há apenas três anos, já na faculdade, ele abriu um computador pela primeira vez. E quase desistiu na primeira semana de aulas.
"Ele estava há muito tempo fora da escola. Quando voltou, levou um susto, estava desanimando", lembra Djanira Margareth Rodrigues Neto, professora de matemática, que deu aulas para Aparecido. "Ele é um aluno calmo, muito esforçado, e acabou ficando. Valeu a pena".
Outro professor, Omar Gonçalves da Silva, com quem Aparecido teve aulas de geometria analítica e álgebra linear, ficou feliz ao saber da promoção. "Tenho muito orgulho de ter dado aulas para ele."
Omar notou duas diferenças fundamentais entre ele e os outros alunos. "Quem veio da escola secundária direto para a faculdade tinha mais pique e mais tempo. Em compensação, o Aparecido tinha uma coisa que os outros não tinham: vontade. A inteligência é só uma questão de trabalhar. Além disso, ele tem uma crença religiosa muito forte. A fé também ajuda".
De fato, frequentar os cultos da Congregação Cristã do Brasil junto com a mulher, Janete Aparecida, é o único compromisso de Aparecido quando não está estudando nem trabalhando.
O casal e os três filhos, de 13, 9 e 7 anos, moram na casa de 36 m2 construída há três anos em regime de mutirão no Jardim José Nanzer, um bairro dormitório de Barrinha, a 40 km de Ribeirão Preto. A prestação é baixa: R$ 21.
Janete ajuda nas despesas de casa fazendo pequenos serviços de costura para as vizinhas, mas agora, inspirada pelo marido, também quer mudar de vida.
"Já avisei: no ano que vem, também vou voltar a estudar. Não dá para esperar ele terminar o curso, como o Aparecido está querendo. Quero estudar para professora logo ", anuncia Janete.
Com a nova função de Aparecido na usina, Janete não precisará mais levantar às 4h30 da madrugada para preparar o café e a marmita do marido (arroz, feijão, legumes e, às vezes, um pedaço de carne ou um ovo). Ele agora vai ter direito a comida quente no bom e farto bandejão da empresa.

Insegurança
Entre os planos da família para o salário novo está fazer um "puxado" no quintal da casa e terminar de pagar o primeiro computador de Aparecido -um Pentium III com 64 MB de memória, comprado há três meses em 24 prestações de R$ 141.
A única tristeza do casal é não poder guardar o computador em casa para mostrar às visitas. Nem com os dois vira-latas latindo sem parar no quintal eles se sentem seguros depois que vários vizinhos foram assaltados.
O bem mais valioso da família foi levado para um local seguro na casa do aposentado Sebastião do Carmo, o pai de Aparecido, a oito quadras de distância.
O progresso tem dessas coisas: os muros altos e as grades com pontas em forma de lança nas casas de Barrinha separam os vencedores e os perdedores da globalização chegando aos canaviais.


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