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INCLUSÃO DIGITAL
Estudante de computação, Aparecido do Carmo deixará de cortar cana para trabalhar como programador
Bóia-fria troca canavial por computador
RICARDO KOTSCHO
ENVIADO ESPECIAL A SERTÃOZINHO
Não foi fácil. Para mudar de vida, há três anos ele enfrenta uma
inacreditável romaria de pelo menos 19 horas diárias entre sua casa, o trabalho e a faculdade.
Acorda ainda no escuro, às 5h.
Só volta para casa após a meia-noite, ao final de uma maratona
de uns 150 quilômetros sacolejando em ônibus no trajeto entre a
casa, em Barrinha, a lavoura de
cana-de-açúcar, em Sertãozinho,
e o curso de ciências da computação do Centro Universitário Barão de Mauá, em Ribeirão Preto.
"Mas tá bom", repete a todo
momento o bóia-fria Aparecido
do Carmo, 39, casado, três filhos,
que a partir de amanhã vai finalmente realizar o grande sonho da
sua vida: trocar o podão (foice) do
corte de cana por um computador do centro de processamento
de dados da Companhia Energética Santa Elisa, em Sertãozinho.
Filho e neto de trabalhadores
rurais, Aparecido nasceu numa
usina de açúcar em Pradópolis e
começou a trabalhar como bóia-fria com 13 anos.
No fim de outubro, quando a
Santa Elisa abriu duas vagas de
programador de sistemas, Rosmary Delboni Ortolan, gerente de
recursos humanos, lembrou-se
logo do bóia-fria que voltara a estudar quase 20 anos depois de
concluir o segundo grau.
Neste meio tempo, prestou concurso para oficial de justiça, funcionário dos Correios e técnico do
Tesouro Nacional. "Meu objetivo
era ter uma renda melhor para
poder fazer uma faculdade."
Chegou a ser aprovado no vestibular de direito da Unaerp, uma
das boas universidades particulares de Ribeirão Preto, mas não
pôde nem pagar a matrícula.
Desemprego
Em 1997, quando houve a fusão
da Usina São Geraldo, onde ele
trabalhava havia 15 anos, com a
Usina Santa Elisa, Aparecido foi
demitido. A esta altura, já era
apontador do setor de motomecanização e estava fascinado com
os computadores que descobriu
nos escritórios
da usina.
Depois de alguns meses desempregado,
voltou para a
vida de bóia-fria, já na Santa
Elisa, mas não
desistiu do sonho.
No ano seguinte, estudando por
conta própria,
foi aprovado
no vestibular da Barão de Mauá.
Com o salário em torno de R$
600 por mês que ganhava até
maio para cortar 12 toneladas de
cana por dia, Aparecido só está no
terceiro ano do curso de ciências
da computação porque conseguiu uma bolsa de estudos integral da empresa. A mensalidade
da faculdade é de R$ 480.
Outros 200 dos 3.600 empregados da Santa Elisa que cursam faculdade recebem bolsas de 50%
da mensalidade. Apenas dez ganham bolsa integral.
"Aqui ninguém deixa de estudar porque não pode pagar a escola", diz a gerente Rosmary Ortolan. Em 1997, a Santa Elisa erradicou o analfabetismo no setor industrial e, no ano passado, entre
os trabalhadores rurais.
Qualificar mão-de-obra é desafio permanente na região, onde a
mecanização da lavoura é cada
vez maior. Em dez anos, metade
de um exército de 60 mil bóias-frias foi trocado por máquinas.
"Precisamos dar a mesma oportunidade que demos ao Aparecido para todos. Não é questão de
ser bonzinho, é ser inteligente. Só
gente feliz produz bem. Este é um
pensamento bem capitalista".
Rosmary dá números para justificar a sua tese: em cinco anos, a
produtividade por homem/dia
cresceu de 7,5 toneladas para 12,6
toneladas e o índice de absenteísmo caiu de 18% para 5,45%.
A preocupação dela agora é outra: cuidar da adaptação de Aparecido às suas novas funções. "É a
primeira vez na empresa que temos uma mudança tão drástica
de um funcionário que sai direto
do podão do corte de cana para
uma sala de computação. Gostaria que ele não fosse tratado como
um diferente."
De uma hora para outra, o salário dele vai quase dobrar. Passa
dos R$ 700 que ganhava como líder de turma na lavoura para R$
1.300 como trainee de programador de sistemas.
Para tornar a transição menos
traumática, Aparecido terá apoio
de psicóloga e fonoaudióloga
(precisa aprender a modular a voz
porque na lavoura fala-se sempre
muito alto), além de orientações
sobre a forma correta de se vestir
no novo ambiente de trabalho.
Na última semana, ele já estava
passando o trabalho de líder da
turma 15, que vinha exercendo
desde junho, para seu substituto,
enquanto fazia exames médicos e
conhecia seus novos colegas.
Foi tudo muito rápido. Há apenas três anos, já na faculdade, ele
abriu um computador pela primeira vez. E quase desistiu na primeira semana de aulas.
"Ele estava há muito tempo fora
da escola. Quando voltou, levou
um susto, estava desanimando",
lembra Djanira Margareth Rodrigues Neto, professora de matemática, que deu aulas para Aparecido. "Ele é um aluno calmo, muito esforçado, e acabou ficando.
Valeu a pena".
Outro professor, Omar Gonçalves da Silva, com quem Aparecido
teve aulas de geometria analítica e
álgebra linear, ficou feliz ao saber
da promoção. "Tenho muito orgulho de ter dado aulas para ele."
Omar notou duas diferenças
fundamentais entre ele e os outros
alunos. "Quem veio da escola secundária direto para a faculdade
tinha mais pique e mais tempo.
Em compensação, o Aparecido tinha uma coisa que os outros não
tinham: vontade. A inteligência é
só uma questão de trabalhar.
Além disso, ele tem uma crença
religiosa muito forte. A fé também ajuda".
De fato, frequentar os cultos da
Congregação Cristã do Brasil junto com a mulher, Janete Aparecida, é o único compromisso de
Aparecido quando não está estudando nem trabalhando.
O casal e os três filhos, de 13, 9 e
7 anos, moram
na casa de 36
m2 construída
há três anos em
regime de mutirão no Jardim
José Nanzer,
um bairro dormitório de Barrinha, a 40 km
de Ribeirão
Preto. A prestação é baixa:
R$ 21.
Janete ajuda
nas despesas
de casa fazendo pequenos serviços de costura para as vizinhas,
mas agora, inspirada pelo marido, também quer mudar de vida.
"Já avisei: no ano que vem, também vou voltar a estudar. Não dá
para esperar ele terminar o curso,
como o Aparecido está querendo.
Quero estudar para professora logo ", anuncia Janete.
Com a nova função de Aparecido na usina, Janete não precisará
mais levantar às 4h30 da madrugada para preparar o café e a marmita do marido (arroz, feijão, legumes e, às vezes, um pedaço de
carne ou um ovo). Ele agora vai
ter direito a comida quente no
bom e farto bandejão da empresa.
Insegurança
Entre os planos da família para
o salário novo está fazer um "puxado" no quintal da casa e terminar de pagar o primeiro computador de Aparecido -um Pentium
III com 64 MB de memória, comprado há três meses em 24 prestações de R$ 141.
A única tristeza do casal é não
poder guardar o computador em
casa para mostrar às visitas. Nem
com os dois vira-latas latindo sem
parar no quintal eles se sentem seguros depois que vários vizinhos
foram assaltados.
O bem mais valioso da família
foi levado para um local seguro na
casa do aposentado Sebastião do
Carmo, o pai de Aparecido, a oito
quadras de distância.
O progresso tem dessas coisas:
os muros altos e as grades com
pontas em forma de lança nas casas de Barrinha separam os vencedores e os perdedores da globalização chegando aos canaviais.
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