São Paulo, segunda-feira, 18 de novembro de 2002

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MOACYR SCLIAR

As agruras dos ladrões

1. Vida insalubre
Ladrão rouba carro, assusta-se com polícia e morre de infarto. Mundo Online,11.nov.2002



"Você acha que minha vida é fácil, mulher. Você pensa que roubar carros é moleza, que é coisa para vagabundo, para marginal. De nada adiantou eu lhe falar sobre as angústias desta profissão. Você não entende, mulher. Você não sabe o que é se aproximar de um carro à noite, a boca seca, o coração batendo forte, as dúvidas nos atormentando: será que este carro tem alarme? Será que tem gasolina suficiente? Será que o dono não vai aparecer, armado, e pronto a nos liquidar? Será que o receptador vai nos pagar um preço justo? Dúvidas cruéis, mulher. Dúvidas para tirar o sono de qualquer um, para dar úlcera no mais tranqüilo. Mas você não acredita nisso, mulher. Você sempre disse que úlcera não dá em folgado. Você sempre disse que eu iria morrer de velhice. Velho, vagabundo e ladrão, foi a expressão que você usou. E eu nada dizia, porque tinha certeza de que o futuro me daria razão. E agora aconteceu. Está aqui a notícia: o cara estava ocupado, tentando levar o carro, apareceu a polícia, interpelou-o violentamente você sabe como os policiais são delicados o pobre se assustou, teve um infarto e pimba, caiu ali mesmo. Vinte e cinco anos, mulher. Vinte e cinco anos, ele tinha. Você acha justo, um rapaz morrer com esta idade? E esta é a vida que levamos, mulher. Este é o trabalho que fazemos. Nada de garantia, nada de assistência médica, nada de insalubridade. Só ameaças e deboches. É por isso que eu digo: não vou longe. Aliás, desde ontem estou sentindo uma dor aqui, na boca do estômago. O que você acha que é? Úlcera ou infarto? Você decide, mulher."

2. Sem olhos no banco
Ladrão alemão esquece de abrir buraco para os olhos em sua máscara e é preso. O ladrão entrou no banco com uma arma de brinquedo e a máscara na cabeça, dando encontrões nas pessoas. Como não enxergava nada, levantou a máscara e pediu dinheiro. O caixa lhe disse que o cofre não poderia ser aberto. O ladrão fugiu, mas foi preso. Folha Online, 11.nov. 2002



"Eles pensam que eu sou idiota, mulher. O ladrão mais estúpido da História, disse um jornal. Eles não sabem o que está por trás desta história nem querem saber. Eles não conhecem o Franz, mulher. Mas você conhece. Você sabe que o Franz é um cara agressivo, irônico. Você sabe que o Franz implicava comigo. Você não serve para nada, ele dizia, você quer ser assaltante mas nem para isso você serve. Tanto me provocou, mulher, que eu fiz uma aposta com ele: eu disse que assaltaria um banco de olhos fechados. Muito bem, respondeu, se você conseguir fazer isto, eu vou embora desta cidade e você nunca mais me verá. Só exigiu que eu colocasse essa ridícula máscara sem olhos: suspeitava que eu estaria espiando por entre as pálpebras. E assim entrei no banco, sem enxegar nada, dando encontrões nas pessoas. Eu queria encontrar uma fila de gente e, seguindo-a, chegar ao caixa. Mas não deu. Simplesmente não deu. Porque as pessoas são indisciplinadas, mulher. Ao invés de ficar em fila, elas mal entra um assaltante no banco se dispersam. E assim eu tive de levantar a máscara e identificar o caixa. Que ainda por cima me mentiu, dizendo que não podia abrir o cofre. Ao ver que não podia contar com ninguém, resolvi ir embora. E aí fui preso. Mas não tem importância, mulher. Vou passar os próximos anos na cadeia treinando para andar de olhos fechados. E a primeira coisa que eu farei quando sair daqui, será assaltar um banco. Aquele banco onde o Franz é caixa, onde você tem conta - e onde vocês dois trocam olhares suspeitos."

O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.



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