São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 2005

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A POLÊMICA SOBRE A MARQUISE DO IBIRAPUERA

CONTRA A MUDANÇA

A marquise do parque Ibirapuera

BENEDITO LIMA DE TOLEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A proposta de Oscar Niemeyer, de demolir uma parte da marquise do Ibirapuera para criar uma praça na área envoltória ao recém-construído teatro, levantou uma polêmica. A demolição foi sustada graças à intervenção dos órgãos de proteção dos bens culturais da cidade de São Paulo, Condephaat e Conpresp.


Como reagiriam esses mesmos arautos se alguém propusesse uma intervenção na igreja da Pampulha?


Uma legião se levantou na defesa da proposta desse representante exponencial da arquitetura moderna, como se isso fosse necessário. Como reagiriam esses mesmos arautos se alguém propusesse uma intervenção na igreja da Pampulha ou em sua área envoltória? Essa obra (1943) já pertence ao patrimônio ambiental urbano de Belo Horizonte. Caracterizou uma época e foi de fundamental importância na afirmação da arquitetura moderna do Brasil, reconhecida internacionalmente.
A conservação da herança cultural de cada coletividade tem imenso valor educativo. Desperta na comunidade a consciência de sua identidade, visível não apenas em monumentos, mas em edifícios, espaços e na paisagem. Os ingleses reservam para esse conjunto a palavra "site" (sítio). Quando seus componentes sofrem alterações, a população se ressente pela interferência no acervo de imagens que lhe são familiares. Pelo contrário, se conservados, esses espaços estimulam contatos e convívio entre os diferentes grupos sociais, unidos por valores que lhes são comuns. E há imagens que são patrimônio da nação. Chegar a Ouro Preto ou a Parati pelo mar será sempre uma experiência emocionante. Aquelas imagens pertencem a todos nós. Por isso, a ocupação crescente dos morros nas cidades do ciclo do ouro representa uma interferência em ambientes consagrados, processo que poderá levar à descaracterização do "sítio", fato que diz respeito a toda a nação.
Em certa época foi anunciada a proposta de demolição da Fábrica Duchen (projeto de 1950), às margens da via Dutra, uma referência cuja importância foi ressaltada por historiadores como Stamo Papadaki (1950) e Henrique E. Mindlin (1956). Houve movimentação para salvar a obra, que acabou vindo abaixo depois que Niemeyer, consultado, afirmou que a obra não tinha importância.
Fica-se com a impressão de, por vezes, ser necessário defender uma obra de seu autor.
No filme "O Carteiro e o Poeta", o primeiro observa ao poeta que, uma vez tendo criado um poema, este não pertencia a seu autor, mas a quem dele precisasse. Pois a marquise passou a ser componente essencial da imagem da cidade de São Paulo e notabilizou-se pelas curvas inspiradas "na beleza da mulher brasileira", como repetidamente tem afirmado seu autor. Na história da arquitetura esse tipo de "imprevisto" vem se colocar ao lado de manifestações como o "art nouveau". A solução de Guimard para proteger as entradas do metropolitano parisiense (1912), por exemplo, causaram tal impressão que acabaram por dar ao movimento a designação "Style Metro" -e, afinal, trata-se de uma simples cobertura.
Esses arquitetos são inimitáveis e, não por outra razão, não deixam seguidores. Não creio que alguém se aventuraria a projetar algo com as características do Templo da Sagrada Família de Gaudi (1910), em Barcelona. Para avaliar obras como essa, poderíamos recorrer a Alberti, o arquiteto renascentista a quem devemos o conceito "Uma obra está completa quando nada pode ser acrescentado, retirado ou alterado, a não ser para pior".
Quando Leonardo Benévolo esteve em São Paulo, em 1980, jornalistas do "Jornal da Tarde" programaram vôo de apresentação da cidade. Do avião, o grande historiador de arquitetura identificou o parque Ibirapuera, que vinha recomendado por colegas do Rio de Janeiro. Ou seja, essa obra, reconhecidamente, é um símbolo da modernidade em São Paulo.
O ano de 1954 foi uma época de grandes transformações da região. Até então, o parque era uma bela floresta de eucaliptos, cujo aroma impregnava a região, iniciativa de Navarro de Andrade, o incansável propugnador do uso dessa espécie, criador do Horto Florestal de Rio Claro. Próximo, na confluência das avenidas Brigadeiro Luís Antônio e Brasil, havia um barracão, demolido a essa época. A população surpresa viu, então, surgir o Monumento às Bandeiras. O obelisco que evoca a Revolução de 1932 veio completar o novo quadro. Pergunto: alguém teria direito de alterar o monumento? E o obelisco?
O edifício que abriga o Detran foi projetado por Oscar Niemeyer. Ao "fundo" e separado por um amplo espaço livre, vemos o prédio do Instituto Biológico, projeto de Mário Whately (1928), um dos melhores, senão o melhor exemplo de arquitetura "art déco" em São Paulo.
Na área entre esses dois edifícios tão significativos sempre ocorreu uma ocupação anárquica: carros apreendidos, barracos precários e outros trastes que transformam a área em uma espécie de favela oficial. Por que não unir os dois edifícios com um belíssimo parque, estendendo o do Ibirapuera e acolhendo formas dignas de ocupação de que São Paulo tanto carece? Seria a valorização de dois momentos da arquitetura paulista.
Essa, sim, uma empreitada merecedora do empenho de todos quantos se interessam pela arquitetura e pela valorização de espaços a serem usufruídos pela população. No conjunto do parque existe, ainda, um ponto a se ponderar, considerados todos os seus componentes, árvores, lagos e pavilhões: a experiência existencial do encontro com qualquer obra e sua ambientação. Nenhuma foto, maquete ou outra forma de registro pode exprimir a emoção dessa experiência.
Auguste Rodin anotou sua sensação ao ingressar nas grandes catedrais francesas: "O que é bonito na paisagem é o que é bonito na arquitetura, é o ar, é o que ninguém aprecia: a profundidade. Ela reduz a alma e a manda aonde ela quer".
Quanto à marquise, venho lembrar a palavra de um crítico da época dos "grands travaux" conduzidos na era Mitterrand. Disse que, para a Ópera da Bastilha, foi escolhido um mau projeto -que, afinal, não é tão ruim assim- e que, se alguém quisesse apreciar uma obra bem implantada no espaço urbano, deveria ver a sede do Partido Comunista Francês, projetada por Oscar Niemeyer.
Concluindo, eu me atrevo a revelar minha posição: desfigurar a marquise será inegavelmente uma perda para São Paulo e para a cultura brasileira. Entre a marquise e o novo teatro, fico com os dois, certo de que será encontrada uma solução harmoniosa, como aconteceu com a referida obra em Paris.

Benedito Lima de Toledo é arquiteto, professor titular de história da arquitetura da FAU-USP e autor, entre outros, de "São Paulo: Três Cidades em um Século"


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